quinta-feira, 29 de julho de 2010

Encontro de Reflexão & Espiritualidade: Nelson Bomilcar


Encontro de Reflexão & Espiritualidade: Nelson Bomilcar



Qual é o fim maior do homem? Glorificar a Deus e gozá-lo para sempre. Esta famosa síntese da razão de nossa existência aponta para a maior necessidade que o homem tem: conhecer o Criador e oferecer o louvor que Ele é digno de receber. A adoração a Deus é um dos temas mais importantes que encontramos nas Escrituras Sagradas. É o tema predileto dos salmistas e é o escopo maior do livro dos Salmos.

Na Reforma Protestante que eclodiu na Europa a partir do século XVI, um dos postulados mais importantes do movimento foi a expressão “Soli Deo Glória!”, que ressalta que tudo que fazemos, pensamos e aspiramos devem ser para o louvor, honra e glória do Senhor.

Em Efésios 5.18 Paulo convida os crentes da igreja de Éfeso para serem cheios do Espírito Santo e, como conseqüência, eles serão capazes de viver “entoando e louvando de coração ao Senhor com hinos e cânticos espirituais...” (5.19). Para o apóstolo a adoração é fruto de um coração cheio do Espírito. O próprio Senhor Jesus Cristo disse que o Pai deseja ser adorado pelos seus, mas, Ele não se contentará com meros arranjos e melodias. Ele Não anda atrás de performances. O que Ele quer é que paremos diante d’Ele e o adoremos em “espírito e em verdade” (João 4.24). Simples e complexo ao mesmo tempo, pois Deus ama a simplicidade da adoração, mas, ao mesmo tempo, quer receber somente do que brota do fundo do coração e do nascedouro de nossa alma e isso o homem natural e mesmo o crente relapso não conseguem oferecer.

Rev. Nelson Bomilcar, estará nos ajudando a pensar nestas verdades. Temos, portanto, um encontro marcado nos dias 27 e 28 de agosto. Um encontro com muita reflexão, aprendizado, quebrantamento, edificação e, claro, louvor e adoração Àquele que é digno de receber.

Até Lá!



Soli Deo Glória!!!

Rev. Idauro Campos
Pastor da Igreja Congregacional em Andorinhas.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Escolhendo Nossos Diáconos: Critérios Apostólicos Para Escolha de Oficiais.

POR: Idauro Campos

Há 1 ano nós, da Igreja Congregacional em Andorinhas, estávamos às voltas com a eleição de novos Oficiais Eclesiásticos. Passamos meses, aos domingos pela manhã, ouvindo uma série de exposições bíblicas sobre o tema. Além disso, nossas pastorais, publicadas dominicalmente no boletim, também apresentavam estudos sobre. Ao final, elegemos 8 Oficiais ( 4 diáconos e 4 diaconisas). Entre os textos que mais me marcaram e, creio, que também à igreja e, sobre tudo, espero, aos candidatos ao oficialato à época, foi Atos 6.3, que tenho o prazer de compartilhar neste blog, na esperança de que seja útil aos leitores, assim como foi para nossa igreja!

“Mas, irmãos, escolhei dentre vós sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria, aos quais encarregaremos deste serviço” (Atos 6.3).

Introdução:


Atos capítulo 6 relata um momento interessante na história da igreja primitiva. Muitos dos judeus helênicos que se converteram na pregação de Pedro (Atos 2.14-41) se recusaram a voltar para seus países de origem (Atos 2.9-11), criando uma situação social crítica para a igreja que precisou resolver as demandas materiais do grupo (Atos 2.45). Entre as necessidades mais básicas estavam as cestas de provisões que eram distribuídas diariamente para as viúvas. Acontece que entre as mesmas havia as naturais de Israel e aquelas que também eram judias, mas nascidas ou habitantes de outras nações. Uma má distribuição estava acontecendo, gerando críticas por parte do grupo prejudicado (viúvas helênicas). Para promover a equidade no tratamento para com aquelas mulheres, os apóstolos decidem pela indicação de sete irmãos que pudessem distribuir as provisões de forma que todos ficassem satisfeitos.
É nesse momento que lemos a orientação apostólica: Mas, irmãos, escolhei dentre vós sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria, aos quais encarregaremos deste serviço”. Ainda é discutido se tais homens equivalem aos nossos atuais diáconos. Há intérpretes que não vêem nenhuma relação daqueles com os oficiais de hoje. Outros, entretanto, enxergam no texto o embrião do oficialato da igreja. Partindo deste segundo pressuposto, vejamos quais os critérios indicados na orientação dos apóstolos para aqueles que desejam servir a Deus como diáconos.

1 – “Escolhei dentre vós” (Critério Eclesial) –

O diácono deve sair da própria comunidade da fé. Ele não deve ser um agente externo na sua igreja. A igreja deve gerá-lo, formá-lo, produzi-lo. O Rev. Manoel da Silveira Porto Filho costumava dizer que a “Igreja é minha mãe; dela me alimento; dela me educo”. A comunidade da fé deve ser um ambiente saudável para a formação de seus oficiais. Tanto diáconos, como presbíteros e também pastores. Igrejas saudáveis produzem obreiros saudáveis. Igrejas maduras produzem obreiros maduros. Os apóstolos não titubearam em sugerir a escolha entre aqueles irmãos da primeira comunidade cristã, pois, a despeito de sua incipiência, a igreja primitiva demonstrava saúde e maturidade. Os apóstolos não se sobrecarregaram com a tarefa da distribuição de alimentos. Não julgaram que somente eles poderiam resolver aquele problema. Não tentaram algum monopólio sobre a igreja, mas, ao contrário disso, convocaram os crentes para o serviço e entenderam que os tais também eram dotados e capazes de servir com qualidade a igreja de Jesus Cristo. Outro aspecto importante é que os sete diáconos levantados (Estevão, Filipe, Prócoro, Nicanor, Timão, Pármenas e Nicolau) foram reconhecidos como dotados das capacitações para o ministério. Isto é importante de ressaltarmos, porquanto é evidente que no seio da igreja ninguém precisa lutar por reconhecimento, pois este é patente aos olhos dos santos. Quando alguém é chamado pelo Senhor, a igreja, naturalmente, reconhece. Os irmãos o escolhem “dentre eles”.

2 - “Boa reputação” (Critério Ético) –

O segundo critério para escolha dos diáconos, apontado pelos apóstolos, foi ético. Os homens levantados para servir na comunidade da fé deveriam ser de boa reputação; de boa conduta; de bom testemunho; aceitos pela comunidade; vistos como sérios; como homens em que nada se podia acusar; respeitáveis; modelos; padrões; dignos de confiança. Como sabemos, no contexto de Atos 6, os diáconos estavam sendo levantados para distribuir os recursos materiais entre as viúvas pobres, logo, eles teriam que lidar com dinheiro e outros recursos e, sendo assim, precisavam, então, ter a confiança dos apóstolos e também do povo da grei. Portanto, houve, é claro, critérios subjetivos, como a unção do Espírito Santo, mas também foram observadas a vida prática e cotidiana dos candidatos à diaconia. A liderança eclesiástica deve ser ocupada por homens e mulheres que reflitam a face de Cristo e honrem o bom nome do Senhor Jesus Cristo para serem modelos e exemplos a todos os que os vêem atuando na seara do Senhor!

3- “Cheios do Espírito Santo” (Critério Espiritual) –

O terceiro critério para escolha dos diáconos, apontado pelos apóstolos, foi espiritual. Os homens levantados para servir na comunidade da fé deveriam ser “cheios do Espírito Santo”. Na verdade, este é o critério mais importante de todos, pois é o que caracteriza o serviço dos santos na seara do Senhor, porquanto ninguém deve ousar servi-LO sem ter a sua unção. Não conseguiremos executar nosso serviço sem a presença do Espírito de Deus, pois é Ele quem derrama poder sobre nossas vidas para que a obra de Deus seja realizada. Não adianta termos disposição, eficiência, habilidade e boa vontade. Para o ministério cristão a unção é imprescindível. No contexto de Atos 6, aprendemos que os diáconos foram levantados para distribuir cestas básicas para as viúvas e mesmo para um serviço tão óbvio e simples, pois bastava saber quem eram as viúvas necessitadas, cadastrá-las e distribuir os mantimentos, mas apesar da obviedade, os apóstolos entenderam que para o serviço deveria ser alguém com poder do alto para realizá-lo. Deveria ser “cheio do Espírito Santo”. Que poderosa lição! Que poderosa advertência! Deus não quer carnais na sua obra. Deus não quer indolentes, preguiçosos e derrotados. Deus quer homens e mulheres simples, mas cheios do Espírito. Que levantemos nossas mãos para a obra de Deus, somente depois de recebermos sua unção e se tivermos comunhão com o Espírito.
É um erro supormos que pelo fato de um ministério na igreja ter uma característica mais administrativa (patrimônio, zeladoria, ação social e etc.) que não devemos ser cheios do Espírito Santo para exercê-lo. No Reino de Deus, seja qual for o serviço, é fundamental a unção e o controle do Espírito sobre nós.

4 – “E de Sabedoria” (Critério Intelectual) –
O quarto critério para escolha dos diáconos, apontado pelos apóstolos, foi intelectual. Os homens levantados para servir na comunidade da fé deveriam ser cheios de sabedoria, pois teriam que lidar com as demandas dos irmãos que precisariam de socorro e alívio. Como o contexto da passagem indica que o socorro aos aflitos era o “pano de fundo” da escolha daqueles homens, significa, então, que eles teriam que saber distinguir quem eram realmente os carentes dos que apenas tentavam se aproveitar da generosidade e visão social dos primeiros cristãos. Para tanto, seria fundamental o bom senso; a percepção; a distinção entre os tipos de problemas e as devidas soluções. Destarte, para o bom desempenho de suas funções, aqueles diáconos precisavam ser sábios. Homens de bom senso. Que saberiam usar a mente de Cristo (1 Co 2.16). Toda liderança cristã precisa ser dotada desta capacidade (1 Co 12. 8). Saber quais os caminhos a serem escolhidos diante de uma situação. Saber tomar providências. Encontrar soluções práticas. Ter uma palavra sóbria, de direção, de conforto, de ajuda, de construção, de edificação, de reconciliação, de apoio e de esperança. Perceba que os apóstolos precisaram de homens “cheios de sabedoria” para os auxiliarem na tarefa da condução da igreja. Semelhantemente, os pastores hoje também precisam estar cercados de gente assim. De gente sábia, que o ajude na sublime tarefa de levar as ovelhas aos pastos verdes e às águas tranquilas.

5 – “... aos quais encarregaremos deste serviço” (Critério Carismático) –
O quinto e último critério para escolha dos diáconos, apontado pelos apóstolos, foi carismático. Os escolhidos para diaconia deveriam estar dispostos e terem os dons necessários para o serviço indicado. Afinal, eles eram cientes das demandas do ministério, logo, se aceitaram a função, deveriam cumpri-la, pois esta era a expectativa dos apóstolos e também da própria comunidade da fé Os sete diáconos que são eleitos sabiam sobre o que lhes aguardavam. Isso é importante de entendermos, pois há muitos que aceitam a indicação para um ministério, mas que quando chega a hora do serviço não querem cumprir. O diácono, como já vimos nas pastorais anteriores, deve ser alguém disposto a visita, ao serviço na liturgia, ao socorro aos necessitados, às reuniões de oração, às reuniões de edificação, às reuniões administrativas, às devocionais que serão promovidas pelo pastor. Quando os apóstolos declararam que os diáconos seriam encarregados naquele serviço, estavam se referindo especificamente a distribuição de alimentos (Atos 6.1-3), portanto, nenhum daqueles homens levantados poderia se negar a fazer, pois viram as necessidades e aceitaram supri-la. Para o exercício de um ministério o dom, a vocação, o talento, a habilidade, a inclinação são fundamentais. Sem o carisma (dom) de Deus não cumpriremos nossa missão. Pense nisso!

Conclusão:
Wayne Gruden, teólogo batista norte-americano, afirma que quando estruturamos nossas igrejas descuidando do respaldo bíblico, terminamos por diminuir a força das Escrituras Sagradas entre nós. Portanto, como igreja protestantes que somos, cujo um dos pilares mais importantes é o Sola Scriptura (Somente a Escritura), devemos, na hora de escolhermos nossos oficiais, observar com esmero o que a Palavra de Deus nos ensina acerca do assunto. Um exame detido de Atos 6.3 e 1 Timóteo 3.1-12, 5.17 e Tito 1.7-9 deverão nortear nossa escolhas para que as façamos levando em conta as orientações de Deus sobre aqueles que devem servir em sua seara. Que Assim seja!!!

Soli Deo Glória!!!

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Espiritualidade para o século XXI: o pensamento de Henri Nouwen

Espiritualidade para o século XXI: o pensamento de Henri Nouwen

Por: Jonathan Menezes

Introdução

Meu propósito aqui será expor o que, em minha visão como leitor e admirador, se constitui no modelo de espiritualidade evidenciado na vida e obra de Henri Nouwen, do “ferido que cura feridas”, balizado por uma de suas mais caras convicções, a saber, de que na vida cristã alegrias e tristezas não se excluem, mas fundem-se; uma perspectiva que deve formar seres humanos maduros e honestos, os quais, pela graça, devem aprender a vivenciar os prazeres e, simultaneamente, carregar os fardos de sua própria existência, segurando e bebendo do cálice da vida, como diz Nouwen, com todas as implicações que isso requer.

Quem é Henri Nouwen?

Padre, professor, psicólogo e escritor, Henri J. M. Nouwen nasceu na Holanda, em 1932, e morreu em 1996, de ataque cardíaco. Desde os cinco anos de idade, Nouwen falava sobre suas pretensões de ser padre, e ele estava decidido a isso. Formou-se em teologia e psicologia na Holanda, tendo sido ordenado pouco tempo depois, em 1957. Nouwen passou os primeiros cinco anos de seu ministério realizando algumas de suas notáveis ambições: estudou na renomada clínica psiquiátrica de Karl Menninger (EUA), lecionou nas universidades de Notre Dame e Yale e viajou muito como conferencista. Por sua ênfase ecumênica e ligeiramente aberta em relação à fé cristã, Nouwen teve o privilégio de falar tanto para católicos como para evangélicos, tendo trânsito livre entre estes dois grupos. Até hoje ele é muito respeitado e lido tanto em uma como em outra vertente religiosa. Como testemunha, Philip Yancey diz que “ele ignorava as recomendações de Roma para que apenas os católicos participassem da eucaristia, e a celebrava diariamente com amigos, alunos ou estranhos, onde quer que estivesse” (YANCEY, 2004, p. 304).

Após um período sabático de seis meses trabalhando com os pobres em países da América Latina, Nouwen recebeu convite para lecionar em Harvard. Nesse tempo sua fama e prestígio como professor, escritor e conferencista já percorriam o mundo, e em todo lugar por onde passava ele era bastante respeitado. Todavia, tudo isto não bastava para amenizar o profundo vazio espiritual e as feridas pessoais que ele sentia aumentar com o tempo, tudo isso combinado a uma vida de fama, glória, agenda lotada de compromissos e atividades mil, levando Nouwen a um ponto de colapso total num espaço de três anos. Até que ele teve a compreensão, à luz da experiência de Jesus, de que o caminho para subir é descer. Assim, ele abandonou sua brilhante carreira nas melhores universidades dos EUA, para compartilhar sua vida com os necessitados, servindo em uma comunidade para deficientes mentais, a Arca - O Amanhecer, em Toronto no Canadá. Conforme o próprio Nouwen disse em seus escritos, “ali ele não foi para dar, mas para receber; não por causa de excesso, mas por falta. Foi para conseguir sobreviver” (YANCEY, 2004, p. 306).

Acredito que uma das principais virtudes que Nouwen cultivava, especialmente a partir dos últimos 10 anos de sua vida, em que ele conviveu de perto com o sofrimento e as limitações de seus amigos da Arca, é a de falar abertamente de suas próprias dores e feridas, não só através dos muitos livros que escreveu, mas também nos relacionamentos interpessoais, como testemunham algumas pessoas que com ele conviveram. Ele afirma, no livro Podeis Beber do Cálice?, que conviver diariamente com os membros deficientes da comunidade Daybreake, o pôs em contato com suas próprias feridas e tristezas internas. Por outro lado, testemunha ele, “a alegria que surge ao viverem juntos em uma comunidade de fracos faz a tristeza não apenas tolerável mas uma fonte de gratidão”. Nas palavras de Nouwen:

Minha necessidade de ter amigos, afeição e aceitação estão exatamente aqui para que todos possam ver. Jamais vivi tão profundamente a verdadeira natureza do ministério pastoral: estar com o próximo em compaixão. O ministério de Jesus é descrito na carta aos Hebreus como sendo de solidariedade com o sofrimento humano. Chamar a mim mesmo de padre, hoje, me desafia radicalmente a abandonar qualquer distância, todo e qualquer pequeno pedestal e toda e quelquer posição de poder, e me desafia a associar minha própria vulnerabilidade à daqueles com os quais vivo. E que alegria isso traz! A alegria de pertencer, de fazer parte de algo, de não ser diferente (1996, p. 40, 41).

Alegrias conjugadas com as tristezas



Henri Nouwen diz que nossa concepção sobre a alegria é baseada no sucesso, no progresso e nas soluções fáceis para nossas mazelas e problemas. Volta e meia ouvimos na igreja que a alegria deve ser a marca distintiva do crente. Mas muitas vezes isso se torna algo do tipo “kit-viagem para o país das maravilhas com Alice e o coelhinho”, ou quem sabe não seria uma espécie de “selo de qualidade cristã”: se você tem, tudo bem, mas se não tem, algo deve estar errado com sua fé. Quantas e quantas vezes cheguei até a me culpar por ser induzido a pensar desse modo nada realístico com que a igreja trata de alegria e felicidade hoje, nada diferindo inclusive da alegria ópio que o mundo pós-moderno tem proposto, do sorriso estampado no rosto, pensamento positivo, muito dinheiro no bolso e “saúde pra dar e vender”.

O culto evangélico, de modo geral, tem refletido fielmente essa realidade. Temos cultos para todos os gostos e tamanhos, afinal a demanda do mercado de “bens simbólicos” (que inclui os crentes) exige que as denominações se adequem à lógica do “quem dá mais leva” para não perder os seus para a “concorrência”. O individualismo de nossos cânticos tem desviado nossos olhares da realidade e da missão, transferindo-nos do mundo terrestre para o mundo celeste. Falam de uma alegria “energética”, como uma total ausência de angústias, dores e sofrimentos, e uma constante presença de paz interior e felicidade. Se não for assim, não pode ser a alegria de Cristo, como diz uma célebre frase que por aí tem sido disseminada: “Não estou em crise, estou em Cristo”. Para essa gente, segundo Caio Fabio, “somente todas as coisas boas são as que cooperam para o bem dos que amam a Deus”.

Não preciso contra-argumentar muito pra dizer que isso, apesar de muito comum, é uma tola subversão do Caminho de Jesus e de toda a bíblia. A oração do profeta Habacuque apresenta o que para mim é a idéia de Deus sobre a alegria: “Porque ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na vide; ainda que decepcione o produto da oliveira, e os campos não produzam mantimento; ainda que as ovelhas da malhada sejam arrebatadas, e nos currais não haja gado; Todavia eu me alegrarei no SENHOR; exultarei no Deus da minha salvação” (Hc. 3:17-18). Observe que Habacuque não está aqui dando origem a nenhuma filosofia de confissão positiva, nem está dizendo seguramente coisa alguma a respeito do futuro, algo do tipo: “eu determino que a figueira vai florescer” ou “tenho certeza que Deus não vai deixar faltar”, e só por isso me alegro no Deus que me salvou. Não. Ele está dizendo que mesmo que as coisas piorem ainda mais, ainda assim ele poderá se alegrar no seu Senhor.

Para Nouwen, o cristianismo de nossos tempos procura desconectar-se completamente da realidade do sofrimento e da renúncia ou da vida abnegada. É um cristianismo que busca vitórias sem esforços. Almejamos, de acordo com Nouwen,

crescimento sem crise, cura sem dores, ressurreição sem cruz. Não é de admirar que gostemos de assistir a desfiles militares e de aplaudir heróis que retornam, operadores de milagres e recordistas. Também não é de admirar que nossas comunidades pareçam organizadas para manter o sofrimento à distância. As pessoas são sepultadas de maneira a disfarçar a morte com eufemismos e ornamentação rebuscada (2002, p. 08).

Na visão de Nouwen, a maneira de Jesus é tão diferente. Ele não veio eliminar as dores, mas ajudar-nos a enfrentá-las com o realismo e a esperança que a vida nesse mundo requer, na perspectiva da graça e do amor de Deus, que padece junto com o sofrimento da humanidade. Ora, mas esse Jesus em nome de quem declaramos, determinamos, fazemos brados de vitória, repreendemos o inimigo, os infortúnios e as doenças que nos assolam, choramos, gritamos, esperneamos, rimos, batemos palma, rolamos no chão, nos declaramos perdidamente apaixonados por ele, não é o mesmo Jesus que disse: “No mundo, passais por aflições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo” (Jo 16.33)? E tudo isso, lembrando, ele disse aos discípulos para que estes tivessem paz. Porém, será que em nossa compreensão triunfalista da fé e ilusória da alegria, existe lugar para se conceber uma paz que não significa apenas “ausência de conflito”, mas que se faz presente especialmente nos lugares de dor?

Em lugar de toda a balbúrdia espiritualista, somos chamados a abandonar a frivolidade do caminho fácil e também do fatalismo e desesperança, a deixar de lado nossos falsos gritos de “Hosana” ao mesmo tempo em que oprimimos nosso povo fabricando ilusões religiosas e, com elas, crentes imaturos e doentes, para viver nos caminhos de Cristo, romper as cadeias que ele rompeu, sofrer nossas próprias dores, não só as inerentes à vida, mas também aquelas inseparáveis do exercício da fé cristã na vida. Nas palavras de Nouwen:

Cristo convida-nos a permanecer em contato com os muitos sofrimentos de cada dia e a experimentar o começo da esperança e da nova vida, justamente aí onde vivemos, no meio das feridas, dores, falência. (...) terei menor tendência a negar meu sofrimento quando aprender que Deus o usa para moldar-me e atrair-me para mais perto de si. Deixarei de ver minhas dores como interrupções dos meus planos e serei mais capaz de vê-las como meios de Deus fazer-me pronto a recebê-lo. Deixarei Cristo viver junto às minhas dores e perturbações (2002, p. 09).

O sofrimento que cura

Minha própria percepção é de que se Deus não é pessoal e, por isso, aberto para chorar comigo em minhas tristezas, tampouco será capaz de rir ao meu lado em minhas alegrias ou se regozijar na minha prosperidade. Em Jesus, assim como na experiência de Jó e de tantos outros, não consigo ver um Deus intocável e insensível de tão poderoso que possa ser, mas, por ser tão poderoso, enxergo um Deus que se “rebaixa” se for preciso pra ter compaixão e misericórdia da minha miséria e que caminha comigo, uma ou dez de milhas, tanto no contexto das minhas dores como de meus maiores prazeres, em meio a alegrias que se conjugam com tristezas. Esse é o sentido da espiritualidade para Nouwen. Não se resume na simples idéia de realizar performances e sacrifícios para Deus, mas em convidá-Lo a entrar em nossas vidas de modo que Ele possa chorar com a nossa aflição ao mesmo tempo em que sofremos com as dores de Seu Filho e, conseqüentemente, compartilhemos do sofrimento do amor de Deus por um mundo ferido e proclamemos libertação. Conforme diz Nouwen, “assim como Jesus, quem proclama a libertação é convidado não só a cuidar dos próprios ferimentos e dos ferimentos do outro, mas também a fazer de seus ferimentos uma fonte maior do poder que cura” (2001, p. 119). Para Nouwen, um ministro ferido pode e deve ser também um ministro que cura. Mas, para sermos “servos da cura”, antes é preciso identificar, entender e aceitar nossa própria dor.

“Nenhum ministro pode esconder sua experiência de vida daqueles aos quais quer ajudar”, afirma Nouwen, ao mesmo tempo em que não se pode empregar mal o conceito de ministro ferido defendendo uma forma de “exibicionismo espiritual” (2001, p. 127). Esse é um tipo de equilíbrio que este autor encontrou contra possíveis questionamentos daqueles que porventura acharem que o conceito de ministro ferido é mórbido e doentio, contradizendo, por exemplo, a idéia de auto-realização, auto-estima, auto-preservação, auto-auto, etc., tão usadas no contexto pós-moderno (o que inclui as igrejas). Ou seja, vivemos nossas “vidas espirituais” como alpinistas de egos, parafraseando Philip Yancey.

Conclusão: um modelo para este século

Como você já deve ter percebido, Nouwen concentrou seus escritos no fracasso e nas imperfeições, falando de dores, tristezas, perdas e feridas constantemente presentes em sua vida, arriscando-se a gerar comentários e críticas depreciativas daqueles que não aceitam essa compreensão, assim como eu estou me arriscando nesse momento ao expor seu pensamento de maneira concorde. Michael Ford, biógrafo de Nouwen, e o escritor Philip Yancey, que dedicou um capítulo do livro Alma Sobrevivente exclusivamente para falar de sua admiração por Nouwen e apontá-lo com um de seus mentores, afirmam que esse “espinho na carne”, essa profunda dor que ele dizia “encarar nos olhos” e sobre a qual fazia questão de falar em seus textos, possivelmente era resultante de uma homossexualidade reprimida e, não sem muitas lutas, rejeitada. Enfim, o fato mais importante a se tratar com isso é que todos nós possuímos feridas; algumas estão expostas, outras escondemos o máximo para que ninguém descubra, nos julgue ou aponte-nos como sendo “menos espirituais” por isso. Outras, quem sabe ainda estão obscuras, num campo menos conhecido de nossas vidas. Eu mesmo, tenho que reconhecer, não estou acostumado e nem gosto de falar de minhas próprias mazelas, nem tampouco de expô-las para que os outros vejam. Mas aprendi com Nouwen que “defeitos e fidelidade não suplantam um ao outro, mas coexistem”. Com Philip Yancey, falando sobre Nouwen, também testemunho meu aprendizado de que sofrimento e alegria podem caminhar juntos, que Deus pode usar todas as situações de nossa vida, até mesmo a dor que nunca vai embora (YANCEY, 2004, p. 328).

E porque esta espécie de ministro, defendida por Nouwen, pode ser chamado de um “ministro curador”, ou um “ferido que cura feridas”? Vou deixar com que Nouwen mesmo responda com suas palavras, escritas no livro O Sofrimento que Cura:

É curador porque afasta a falsa ilusão de que integridade pode ser dada de um ser para outro. É curador porque não extrai a solidão e a dor do outro, mas convida a reconhecer sua solidão em um plano que possa ser partilhada. Muitas pessoas nesta vida sofrem porque estão procurando ansiosamente pelo companheiro, pelo evento ou encontro que as livrará da solidão. Mas, quando entram em uma casa de real hospitalidade, percebem logo que seus próprios ferimentos devem ser entendidos não como fontes de desespero e amargura, mas como sinais de que têm que caminhar para frente, obedecendo aos sons do chamado de seus próprios ferimentos (2001, p. 133).

Quero terminar, citando uma canção do Stênio Marcius, que por sua vez se remete a essa profunda poesia da agonia da vida escrita pelo apóstolo Paulo em 2Co. 12:7-10, diz assim:

Às vezes parece que estou só e vencido, mas ao olhar vejo o meu Senhor, olhando para mim e dizendo, dizendo assim: a minha graça, a minha graça te basta, te basta, te basta; Porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza. A minha graça te basta, te basta, te basta, porque quando sou fraco é que sou forte, que sou forte, que sou forte.

Bibliografia Geral

(Alguns livros de Nouwen e escritos sobre ele)

NOUWEN, Henri. Crescer: os três movimentos da vida espiritual. São Paulo: Paulinas, 2000.

______. Cartas a Marc sobre Jesus. São Paulo: Loyola, 1999.

______. Espiritualidade do deserto e o ministério contemporâneo. São Paulo: Loyola, 2000.

______. Podeis beber do cálice? São Paulo: Loyola, 2002.

______. Oração: o que é e como se faz. São Paulo: Loyola, 1999.

______. O Sofrimento que cura. São Paulo: Paulinas, 2001.

______. Adam, o amado de Deus. São Paulo: Paulinas, 2000.

______. A Voz íntima do amor. Uma jornada através da angústia para a liberdade. São Paulo: Paulinas, 1999.

______. Mosaicos do presente. Vida No Espírito. São Paulo: Paulinas, 1998.

______. A Volta do Filho Pródigo. A história de um retorno para casa. São Paulo: Paulinas, 1997.

______. Intimidade: ensaios de psicologia pastoral. São Paulo: Loyola, 2001.

______. O perfil do líder cristão do século XXI. Belo Horizonte: Atos, 2002.

______. Transforma meu pranto em dança. Rio de Janeiro: Textus, 2003.

______. Uma carta de consolação. São Paulo: Cultrix, 1982.

______. Nossa maior Dádiva. São Paulo: Loyola, 1997.

______. Memória viva. Apostolado e oração em memória de Jesus Cristo. São Paulo: Loyola, 2001.

______. Estrada para a paz: escritos sobre paz e justiça. São Paulo: Loyola, 2001.

______. Diário: o último ano sabático de Henri J. M. Nouwen. São Paulo: Loyola, 2003.

O’LAUGHLIN, Michael. Henri Nouwen: his life and vision. New York: Orbis Books, 2005.

SHAW, Lucy. “Henri Nouwen: a escalada para Deus”. In: YANCEY, Philip. & SCHAAP, J. C. Muito mais que palavras. São Paulo: Vida, 2005.
YANCEY, Philip. Alma Sobrevivente. Sou cristão apesar da igreja. São Paulo: Mundo Cristão: 2004

sexta-feira, 23 de julho de 2010

RESENHA: A Caminho da Maturidade na Experiência Com Deus.

Alfonso Garcia Rubio. A Caminho da Maturidade na Experiência de Deus (São Paulo: Paulinas, 2008) 227 p.


“A Caminho da maturidade na experiência de Deus”, publicado pela editora católica Paulinas, é uma ampliação das idéias apresentadas pelo teólogo e padre diocesano, Alfonso Garcia Rubio, um espanhol radicado no Brasil, país que adotou desde 1959, onde trabalha como professor na Pontifícia Universidade Católica ( RJ).

As idéias, agora ampliadas na presente obra, foram anteriormente publicadas em 2000, sob forma de artigo na revista Atualidade Teológica.

Além da introdução e conclusão, a obra é constituída de cinco capítulos em que serão discutidas as expressões da ambigüidade do ser humano. Para tanto, Garcia Rubio apóia-se tanto reflexão bíblico-teológica, como também da psicologia profunda, orientando-se por autores da escola junguiana.

A proposta do livro é apontar o caminho que conduza o cristão a uma relação madura com Deus e também com a comunidade. Para isso, o autor compreende que são necessárias as tomadas de consciência da necessidade de tais experiências e propõe uma sequência no processo em direção ao alcance de tal libertação e maturidade. Destarte, no primeiro capítulo, Garcia Rubio aponta a necessidade de reconhecimento da zona de sombra que está no inconsciente de cada indivíduo, mas também nas comunidades, a fim de superarmos a tentação da projeção de nossas anomalias sobre os mesmos, pois somente assim poderemos viver na verdade. Reconhecer a sombra abre o caminho para a vivência comunitária e para superação no amor incondicional de Deus, produzindo maturidade na experiência com Ele.


No segundo capítulo, Garcia Rubio, utilizando instrumental psicanalítico freudiano, identifica a problemática do infantilismo religioso como um obstáculo à relação madura com Deus. Tal infantilismo é oriundo da fase incipiente da vida de uma pessoa, tendo nas figuras materna e paterna a sua causa. Em face da não ruptura do sentimento de onipotência construída na infância, o indivíduo chega à vida adulta tendo a necessidade de projetar tal onipotência. A religião, neste estágio, lhe servirá cabalmente, pois lhe apresentará um Deus em que atende e catalisa a projeção. Destarte, o autor aponta também para a importância da superação deste infantilismo religioso, afirmando a seriedade de vermos Deus não como nosso “quebra-galho”, pois o mesmo configura-se em sutil idolatria, pois não o representa conforme o Evangelho o faz em Jesus Cristo.


No terceiro capítulo, o autor sugere a perspectiva da relação de Jesus de Nazaré com Deus Pai, a fim de consequentemente, superarmos nossa imaturidade, mas, para isso, é preciso levar em conta tanto a perspectiva mística como também a dimensão ética da relação entre Jesus e o Pai. Isto significa que a partir de Jesus, o encontro com o Pai representa em prática da justiça, envolvimento ético e compromisso no serviço ao próximo, porquanto assim, o Pai, em nós, é revelado!


A síntese do quarto capítulo é de que a experiência comunitária sadia é sinal da possibilidade da paz. Garcia Rubio nos lembra aqui que a violência está presente em nós e por isso no mundo, pois a portamos. Entretanto, nada está perdido, pois podemos, nas comunidades eclesiais, vivenciarmos o amor e a fraternidade, permitindo assim, nosso progresso rumo à maturidade da relação com a Trindade.


Finalmente, o quinto capítulo nos lembra que a culpa, tão presente nos círculos cristãos sejam católicos ou protestantes, pode ser destrutiva e imobilizadora ou, ao invés disso, remetente ao perdão e ao recomeço. Para a última prevalecer o resgate é o do conceito do amor incondicional de Deus, de seu perdão e de sua justificação.


Afonso Garcia Rubio nos brinda com uma leitura agradável, informativa e rica. Suas proposições são cristãs. Suas conclusões são bíblicas, embora em sua abordagem utilize ferramental psicanalítico. A diagramação ajuda, excetuando-se apenas pelo sumário ao final que, fugindo ao hábito editorial brasileiro de situá-lo ao início das obras, termina por confundir um pouco o leitor.


Recomendo a leitura do livro!

POR: IDAURO CAMPOS

RESENHA : Rostos do Protestantismo Latino-Americano.

José Miguez Bonino. Rostos do Protestantismo Latino-Americano (São Leopoldo: Sinodal, 2003) 155 p.


POR: Idauro Campos


Rostos do Protestantismo Latino – Americano foi publicado originalmente em 1995 em Buenos Aires (Argentina), como resultado de uma série de conferências que o autor, José Miguez Bonino, ministrou na Cátedra de Carnahan em 1993.



O livro tem como objetivo, em seus seis capítulos, apresentar as matizes do protestantismo atuante nos países da América Latina e os caminhos para uma maior relevância na comunicação da mensagem cristã. Para tanto, Bonino identifica quatro expressões (rostos) do protestantismo: liberal, evangélico, pentecostal e étnico e os apresenta didaticamente nos primeiros capítulos de sua obra. Nos dois últimos capítulos, Bonino sugere uma coerência teológica trinitária e a unidade como condições para uma melhor comunicação dos conteúdos da fé e militância cristãs no contexto latino-americano.



No primeiro capítulo de seu livro, José Miguez Bonino trata do rosto do protestantismo liberal e pontua que sua ênfase desenvolvimentista voltada para a educação e a criação de escolas, como forma de libertar o indivíduo, foi uma das expressões mais significativas desta forma de cristianismo, permitindo, inclusive, que não precisasse entrar no mérito das desigualdades sociais produzidas ou mantidas pelos regimes totalitários que figuraram no continente. Além disso, o autor apresenta as razões do fracasso do empreendimento liberal, a saber, a crise de 1929, a ambigüidade teológica dos missionários quanto às propostas liberais, à fraca aderência dos próprios protestantes e a inviabilidade da proposta em terra latino-americana.



No segundo capítulo
, mais claro e didático, Bonino apresenta a expressão evangélica do protestantismo, destacando a conversão, a separação do mundo, o biblicismo e a ênfase missiológica como marcos nítidos da presença evangelical. Para o autor este segmento se adaptou melhor aos regimes de exceção em face de que as ditaduras apelaram à moral, à ordem e à estabilidade, cujos pilares atraíram os conservadores evangélicos que além de tudo se enfileiravam para o fundamentalismo teológico, gerando, com isso, todo um ambiente propício à alienação e desativação.



No terceiro capítulo
é abordado o rosto pentecostal com seus postulados teológicos gravitando em torno da experiência de salvação, batismo com Espírito Santo, saúde divina e escatologia apocalíptica pré-milenarista, embora já se perceba, quanto ao último, um esgotamento de sua ênfase no discurso pentecostal. O autor também salienta algo como uma esquizofrenia do movimento, porquanto valoriza a participação do leigo, mas é fortemente submisso ao líder, assim como os adeptos rejeitam o mundo, mas desejam a prosperidade no presente; evitam a política, mas se aproximam do poder.



No quarto capítulo
há uma apresentação do protestantismo étnico, uma designação das igrejas que trouxeram seus fiéis de fora ou que vieram apenas para zelar pelos estrangeiros que no continente moravam e trabalhavam. Bonino destaca a diferença entre as comunidades protestantes de missão e as de imigração (étnica) na teologia, visto que a primeira é pneumatológica, enquanto que a segunda é cristológica. A Distinção também é prática, porquanto o protestantismo de missão é evangelístico e o étnico é mais pastoral.



No quinto capítulo José Miguez Bonino propõe uma reflexão trinitariana que permita uma abordagem das Escrituras Sagradas que identifique a mensagem e ação do Pai, do Filho e do Espírito Santo aos problemas econômicos, sociais, políticos e espirituais dos cidadãos da América Latina. Bonino critica a leitura tricotômica da Trindade, onde parece dividir as tarefas das Pessoas, levando a “obstacular” a compreensão de que a Trindade toda está envolvida no chamado do homem ao serviço do Reino de Deus e de que esta mesma Trindade está atuante na história presente do homem no contexto social onde vive. Destarte, a Trindade convoca o regenerado à encarnação dos valores do Reino na história. O homem é um agente do Reino de Deus que não apenas é apenas transcendente, mas também histórico.



Finalmente, no sexto capítulo, o autor pontifica a unidade, representada, no sentido de missão, que supera as matizes denominacionais e faciais do protestantismo latino-americano, como a ferramenta necessária à construção de uma atuação mais significativa no contexto social, econômico e político do continente. Mas, para que esta unidade funcione, é necessária uma nova reflexão teológica (trinitária) da missão da igreja no mundo.



A intenção de José Miguez Bonino é produzir uma reflexão com convocação ao engajamento social da igreja sem que esta perca a dimensão transcendental e metafísica de sua mensagem, esperança e missão. Para Bonino não é preciso apenar nos ater na soteriologia de nossa mensagem, mas conciliá-la com uma cristologia missiológica, onde se sabe, que O Verbo se fez carne e veio montar sua tenda neste mundo. Concomitantemente, para uma relevante militância histórica, o protestantismo não deve esquecer que sua estação final não é o já e o agora, mas há novos céus e nova terra prontos para irromperem. Diminuir tal expectativa é desonrar o Evangelho e, semelhantemente, esperar somente pelo céu, indiferente aos dramas deste mundo, é viver aquém dele.



Rostos do Protestantismo Latino-Americano é um livro maçante e cansativo. Bonino não apresenta nenhuma novidade ao convocar à igreja à dialética de uma reflexão social com expectativa metafísica. Outros autores, antes dele, já fizeram isso, como John R.W. Stott em seu “Ouça o Espírito, Ouça o Mundo”, publicado no Brasil pela ABU em 1992. Além disso, em 2009, comemorou-se os 35 anos do Pacto de Lausanne que advoga a práxis do Evangelho Integral ou Missio Dei, uma tentativa de conciliação, décadas antes, das propostas de Bonino.



Quanto a Sinodal o livro foi bem editado, embora se os subtítulos estivessem mais bem destacados facilitaria a leitura. A despeito de ser maçante, recomendo Rostos do Protestantismo Latino-Americano, pois sua abordagem, embora não seja novidade, contudo, não deixa esquecer nossa tarefa como cristãos de olhar para nossa esperança futura sem negligenciar nossos deveres para com o Reino de Deus na história aqui e agora.

POR: IDAURO CAMPOS

quarta-feira, 21 de julho de 2010

TEOLOGIA EUCARÍSTICA

“E perseveravam (...) no partir do pão” (Atos 2.42).


POR: IDAURO CAMPOS.


Introdução:

O artigo definido o que aparece antes da expressão “partir do pão” no original grego do Novo Testamento (em nossa Bíblia em português temos a contração da preposição em com o artigo o = no), não apenas indica uma refeição entre amigos, mas sim uma refeição mais sublime e específica. A referência é à celebração da Ceia do Senhor, onde, através do partir do pão, a vida, o sacrifício, a morte e a ressurreição do Senhor Jesus Cristo eram lembrados. Quais os ensinamentos que a celebração da Ceia transmitia aos crentes primitivos? Por que o rito tornara-se fundamental?



“Por que todas às vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor até que Ele venha” (1 Coríntios 11.26).



1 – A Celebração era um emblema do Sacrifício e Morte do Senhor Jesus Cristo:

Ao partir o pão na celebração da Ceia, realizada, inicialmente, em todas as noites de encontros entre os discípulos e, posteriormente, no primeiro dia da semana (Atos 20.7), os cristãos estavam trazendo à memória de todos os que participavam daqueles cultos domésticos, o valor central que o sacrifício e a morte de Jesus tinham em suas vidas. Cristo partilhou sua vida por amor de muitos, morrendo e derramando seu sangue na cruz do calvário para que n’ Ele tivéssemos vida eterna. O Senhor se apresentou aos discípulos como o Pão da Vida que nos alimentaria espiritualmente (João 6.35), mas este alimento somente seria possível mediante seu sacrifício vicário (substitutivo) realizado no Calvário. É a morte de Cristo que nos garante a redenção. Somos salvos de toda a condenação porque Cristo morreu em nosso lugar. Sem a expiação do Cordeiro de Deus, a salvação não seria possível.

A Igreja Primitiva entendeu a centralidade da morte de Cristo tão grandemente que se reunia para a Ceia com um claro senso de reverência e gratidão ao Senhor que por ela se entregou. Isso foi um poderoso testemunho naqueles dias! Quando nos reunimos para celebrar a Ceia, não podemos nos esquecer do lugar central que a morte de Cristo tem em nossa adoração. Foi entre dores e gemidos na cruz que Jesus proferiu sua famosa frase “Tetelestai” (está consumado), em João 19.30. O plano de salvação dos pecadores havia chegado ao seu clímax. Era o fim de toda condenação contra nós (Cl 2.14-15)! Isso trouxe, além de temor e respeito, gozo indizível aos crentes que, através do rito externo do partir do pão, anunciavam a todos o que Jesus fizera por eles. Através da morte de Jesus, Deus, o Pai, provara aos homens que os amava e se importava e que, através de Seu Filho, veio resgatá-los e levá-los para casa (Rm 5.8). Ninguém jamais ouvira falar de tamanho amor! A morte de um produzira vida a muitos. A Ceia significava tudo isso. Os discípulos entenderam. O mundo se espantou!!!

2 – A Celebração da Ceia era um emblema da Ressurreição do Senhor Jesus Cristo:

Não era apenas a morte de Cristo que estava sendo anunciada na celebração da Ceia, mas também sua ressurreição, afinal Ele era “o Pão Vivo que desceu do céu” (João 6.51) e todo aquele que comesse d’ Ele, viveria eternamente. A Ceia do Senhor apontava para o maravilhoso evento da ressurreição. Quando Jesus aparece pela última vez aos seus discípulos, já ressuscitado, eles fizeram sua última refeição com pão e peixe (João 21. 12-14). Os discípulos sabiam que um dia estariam novamente com o Senhor. Sabiam que as bodas do Cordeiro os aguardavam (Ap 19.7,9). Sabiam que a morte não pôde detê-lo na sepultura. Uma grande festa esperava por eles (Ap 19.1-8), por isso celebravam sua vitória e aguardavam sua vinda, anunciada também no momento da Santa Ceia. Esta é a razão pela qual a Ceia não deve ser um culto triste, pesado e enfadonho, mas sim, celebrado com brados, aleluias e muita alegria, pois Cristo venceu a grande inimiga dos homens, a morte. O apóstolo Paulo, em sua carta aos Romanos 8.17, lembra-nos que somos filhos de Deus e, como tais, temos uma herança a receber, a vida eterna. Além disso, Paulo, na mesma carta, também traz à memória que certamente seremos ressuscitados, assim como o Mestre (Rm 6.5). Em Cristo a vida eterna, o grande sonho dos homens, se tornou realidade. Solo Christus!!! Soli Deo Glória!!!


3- A Ceia do Senhor era um lembrete de sua volta.


Jesus Cristo prometeu voltar para buscar os seus discípulos (João 14.3). Eles ouviram a promessa do seu retorno através do próprio Mestre e também da boca de anjos (At 1.10 e 11). Não precisariam ficar temerosos quanto ao caos deste mundo. Tampouco as violentas perseguições não os assustariam, pois, um dia, estariam todos reunidos novamente com Ele. Todos novamente se sentariam para um grande banquete. O apóstolo Paulo discerniu esta verdade e exortou os crentes de Corinto a celebrarem a ceia tendo em vista a vinda do Mestre (1 Co 11.26). “Até que Ele venha”. É a esperança e ardente expectativa que o apóstolo partilha com seus irmãos em Corinto. Morte, ressurreição e segunda vinda são as realidades espirituais celebradas na ceia do Senhor que despertam reverência, alegria e expectativa e que são vivenciadas por todos aqueles que amam ao Senhor. Foi assim na igreja primitiva. É assim também em nossos dias.

Conclusão:

O partir do pão era um grande momento para a igreja. Havia lutas e dificuldades que estavam sobrevindo à igreja (At 8.1; Hb 10.32-39), mas, apesar destas, os crentes perseveravam na celebração do rito que lhes lembrava o que Jesus fizera por amor a eles, da promessa que herdariam o Reino de Deus e que seriam novamente reunidos diante do Pai. Assim, a igreja convenceu a muitos que Cristo era o Caminho. Enquanto, os incrédulos romanos e as autoridades religiosas de Israel achavam que tinham vencido a batalha contra Jesus e que sua morte frustraria e dispersaria seus seguidores, o que aconteceu foi justamente o contrário. A morte de Cristo os uniu. A morte de Cristo os inspirou. Foi um espanto e um escândalo para a sociedade da época que não conseguia entender como a morte de um simples carpinteiro executada da forma mais vexatória e humilhante que o mundo até então conhecia, poderia suscitar tanta vida, interesse, alegria, esperança, unidade, amor, comunhão entre os homens. Pelo testemunho da igreja, a sociedade entendeu que a morte de Cristo não foi o fim. Quem dera todos os nossos cultos de Santa Ceia fossem tão cheios de beleza, conteúdo e significado como eram os daqueles dias!

terça-feira, 20 de julho de 2010

Missão Integral: Um Convite à Reflexão.

POR: Ricardo Quadros Gouvêa

I. Palavras Introdutórias


Muito já se escreveu sobre missão integral. Os livros recentemente lançados sobre o assunto, o de René Padilla e o de Ricardo Gondim, perfazem juntos uma boa síntese do que se entendeu teologicamente até hoje por missão integral e os problemas desse construto teórico, bem como de sua aplicabilidade na vida das igrejas evangélicas e dos movimentos evangélico e/ou evangelical.

Teremos em breve encontros em que debateremos estas obras com seus autores. Sendo assim, o que propomos para hoje? Proponho um exercício de reflexão teológica conjunta a partir de um texto que servirá meramente como ponto-de-partida, que não se pretende original ou inovador, mas sim esclarecedor.

Não sei, entretanto, se eu entendo bem o que quer dizer “missão integral” ou o que é a “teologia da missão integral”. Vejo discursos e práticas desalinhadas sob esse mesmo rótulo, e fico com a sensação de que há desinformação e dissonância cognitiva, o que pode e deve ser resolvido, além de uma salutar discordância e variação nuançada, o que é positivo, mas convida ao diálogo.

Este texto busca, portanto, ainda que modestamente, auxiliar na caminhada em direção a uma resposta acerca do significado do construto teórico teológico “missão integral”, tão importante na história da Fraternidade Teológica Latino-Americana.

Estou convencido que há dois estudos propedêuticos que se fazem necessários antes que exploremos o conceito de missão integral propriamente, tentando uma aproximação mais acurada de definição ou de identificação. Passo agora, portanto, a essas duas excursões breves em teologia filosófica ou teologia cultural ou ainda teologia apologética, como se dizia antigamente. Estas duas excursões lidam com as relações entre evangelho e cultura, primeiro e, depois, entre evangelho e política.


II. Evangelho, Cultura e Política: Duas Excursões Teóricas


1. Evangelho e Cultura

Esta sempre foi uma relação de grande tensão na história do cristianismo. Hoje compreendemos que não poderia deixar de ser. Evangelho e cultura se distinguem, mas não é fácil distingui-los. O Evangelho não existe a não ser enculturado, isto é, contextualizado. Há quem queira separar o Evangelho da cultura, mas isso nunca existiu, e não pode ser feito. É da natureza do Evangelho ser cultural. O Evangelho já nasce inserido numa cultura, a cultura judaica, mas não se confunde com ela. Esta é a tensão infinitamente elástica que nos causa tantos transtornos: o Evangelho não é a cultura, nem mesmo a cultura judaica, mas só existe imiscuído e misturado com a cultura, de tal forma que não é possível extraí-lo e limpá-lo da cultura sem causar dano à natureza intrínseca do Evangelho e também à cultura. Se tentarmos distinguir cultura de Evangelho, fica um pouco de cultura, perde-se um pouco de Evangelho, e não se obtém um bom resultado.

A primeira transposição cultural sofrida pelo Evangelho foi para a cultura helenista dos tempos da chamada igreja primitiva. Essa transposição foi feita com razoável sucesso, mas não sem fortes traumas. É uma transposição que começa com Paulo, e é, portanto, sancionada pelo próprio Evangelho, pelas Escrituras Sagradas. Mas o Novo Testamento também já dá testemunho dos traumas e aflições causados pela transposição. O relativo sucesso do empreendimento deve nos fazer perceber as tremendas transformações sofridas pelo Evangelho no mundo helenista, e, em particular, a leitura de tendências neoplatônicas e semi-gnósticas que acabaram por preponderar no período patrístico, e acabaram por servir de base para a construção da teologia.

Uma segunda transposição acontece no período medieval, e posteriormente no período moderno, e sempre sofreu o Evangelho transformações, assim como transformou as culturas. Com o surgimento das nações-estado modernas, e com o crescimento econômico e populacional advindo das revoluções científica e industrial, surge um grande número de culturas ocidentais distintas promovendo novas tensões com o Evangelho herdado, e o trabalho missionário leva o Evangelho para culturas não-européias, que iriam absorver o evangelho misturado à cultura dos próprios missionários.

Os missionários das igrejas protestantes históricas trouxeram ao Brasil um Evangelho marcado pelos traços culturais de onde eles haviam partido. Foi só no século XX que a relação Evangelho e cultura passou a ser mais estudada e compreendida. Começou-se a perceber a enorme complexidade do processo enculturação do Evangelho, e se começou a falr, no fim do século XX, em contextualização.

O grande cientista da religião Helmut Richard Niebuhr, irmão do célebre teólogo Reinhold Niebuhr, foi um dos pioneiros nesse estudo, com o clássico Cristo e Cultura, onde distingue cinco diferentes possibilidades compreensão do relacionamento entre Evangelho e Cultura, que ele denomina: (i) Cristo contra a cultura; (ii) Cristo da Cultura; (iii) Cristo acima da cultura; (iv) Cristo e Cultura em Paradoxo; e (v) Cristo transformador da cultura. Niebuhr nos mostra como todos os cinco “tipos” (“tipos ideais”, como ele diz) foram praticados e implicitamente ensinados através dos tempos. No entanto, sugere que os primeiros dois são enganosos, distorções, o primeiro pela rejeição da cultura, e o segundo pela sua adoção não criteriosa ou sem qualificações necessárias. Eles representariam, grosso modo, os pólos fundamentalista e liberal. Os três outros tipos estariam, segundo o autor, mais de acordo com aquilo que o Novo Testamento propõe, o terceiro representando a posição tomista, o quarto a posição existencial-dialética, e o quinto a visão mais comum na teologia contemporânea.

Ao que me parece, a teologia da missão integral se propõe partidária, acima de tudo, da quinta possibilidade, de ver Cristo como transformador da cultura, sem negar a importância e o valor da cultura, como no caso principalmente do primeiro tipo niebuhriano, mas também do terceiro, típico do mundo evangélico conservador (que é em grande grau tomista sem saber disso). Trata-se, portanto, de trazer o Evangelho à cultura para redimi-la, não para alterá-la. Isso está de acordo com o que dissemos a princípio: o Evangelho só é verdadeiramente o Evangelho quando está enculturado, inserido na cultura e contextualizado, e só assim não é distorção.

Em suma, Cristo é mais, muito mais do que normalmente pensamos. Cristo significa uma vida melhor não só para o indivíduo, mas para a nação. O Evangelho propõe um mundo melhor, e nos convida a promover esta integração do Evangelho às culturas humanas em particular, e aos nossos projetos de civilização. Qualquer outra possibilidade é uma distorção alienante que retira do Evangelho seu escopo e seu poder transformador.


2. Evangelho e Política

Há quem diga abertamente que o Evangelho nada tem a ver com política. Há quem deplore que se discuta o que se chama vulgarmente de “questões políticas” na igreja. Quando vemos o péssimo exemplo dos políticos evangélicos, até entendemos a razão desse tipo de ojeriza à política. Mas, em geral, é fruto de uma pregação evangélica distorcida que aliena as pessoas, fazendo-as pensar que as questões políticas e sociais nada têm a ver com espiritualidade.

A relação entre cristianismo e política não deve ser confundida com a relação entre igreja e estado. A separação entre igreja e estado foi uma preciosa conquista da democracia. Ela garante a liberdade de culto e garante que, na ausência de uma religião oficial do estado, nenhuma instituição religiosa será privilegiada pelas leis do país. Isso nada tem a ver, no entanto, com a relação entre cristianismo e política. O verdadeiro cristianismo, me parece, está envolvido nas questões sócio-políticas até o pescoço. Ou talvez deveríamos dizer: até a cabeça, que é Cristo.

Sabemos que a Bíblia e o Evangelho nos convidam a um sério engajamento com os problemas sociais, econômicos e políticos. O quietismo supostamente presente em Romanos 13 empalidece ante as inúmeras passagens bíblicas nos convidando à denúncia e ao combate das injustiças sociais e os desmandos políticos. Os estudos contemporâneos sobre os tempos de Jesus e sobre sua pessoa e ministério, como os de Marcus Borg, John Crossan, Richard Horsley, e N. T. Wright, entre outros, tornam patente o fundamental elemento sócio-político de sua missão.

Isso nos convida a entender o que é a ação política que tem lugar no contexto do Evangelho. Não estamos falando de política partidária, que visa a obtenção e manutenção do poder. A ação cristã na política partidária é, em geral, fisiológica e clientelista, em benefício de igrejas, inclusive, e é, em suma, má política e mau cristianismo. Estamos falando de cidadania e consciência política do cidadão que leva a envolver-se nas questões sócio-políticas que o afetam diretamente, e particularmente a formulação e promulgação de leis que o beneficiam ou não, enquanto cidadão.

Esse é o problema da ação social assistencialista, que é o que os evangélicos praticam, em geral, e que às vezes se confunde com Missão Integral e com consciência cidadã e sócio-política, quando não é. O assistencialismo não resolve os problemas sociais e políticos porque não atinge o cerne das questões, não desce às estruturas, não ameaça os poderosos. Pelo contrário, o assistencialismo se encaixa perfeitamente no modelo dos poderes opressores de uma sociedade. Por isso, as igrejas não são combatidas, porque não ameaçam esses poderes políticos e econômicos. Se o fizesse, seria perseguida.

O que seria, então, uma igreja engajada numa luta pela cidadania e pela conscientização sócio-política? Seria uma igreja que estimulasse os seus membros a protestar, por meios legítimos e não-violentos, como passeatas e abaixo-assinados, reivindicar ante as autoridades, e, por fim, exigir leis mais justas e ação governamental voltada para a melhoria das condições de vida dos menos favorecidos. Não é isso que acontece nas igrejas evangélicas.

Eu tendo a pensar que o que a FTL entende por Missão Integral implica em uma restauração da integralidade do Evangelho de Cristo, hoje obliterado nas igrejas evangélicas, por meio de uma compreensão da relação tensa e paradoxal entre Evangelho e Cultura que nos desafia com o poder de Cristo para a transformação da cultura, e por meio de uma compreensão da relação entre Evangelho e Política que nos faça perceber as dimensões políticas e sócio-econômicas da pregação de Cristo.


III. Via Negativa


Estamos prontos agora para iniciar nossa busca pelo sentido da expressão missão integral. Para fazermos esta busca juntos, proponho partirmos de uma ponderação invertida ou negativa. Em vez de nos perguntarmos “o que é missão integral”, perguntemo-nos antes “o que não é missão integral”. Faremos algumas sugestões que certamente auxiliarão na limpeza do terreno para uma edificação positiva mais adequada a seguir.

Então, comecemos. Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que:


1. Missão integral não é “estratégia de evangelização”.

Eu peço perdão por iniciar esta parte com algo aparentemente tão banal, mas também tão fundamental. Vale dizer que eu mesmo já ouvi pessoas, em reuniões da FTL, manifestarem em suas falas, sem serem corrigidas, estar sob a sombra deste terrível equívoco. Não há equívoco mais contrário ao espírito da teologia da missão integral, em minha opinião, do que pensá-la como uma estratégia para a evangelização. É evidente que os adeptos da teologia de missão integral logo dirão que o próprio conceito de evangelização ganha novas cores a partir da adoção da noção de missão integral, que deixa de ser mera conquista de almas para Cristo, etc. etc. Porém, por outro lado, quem comete esse equívoco ainda não está, em geral, sob o impacto de uma nova compreensão do evangelho e da missão da igreja que a teologia de missão integral impõe. De qualquer forma, os evangélicos em geral tendem a cair ou recair em fórmulas gnósticas que separam e distinguem o material e o espiritual, o corpo e a alma, num espírito contrário ao do ensino neotestamentário. Vale a pena, portanto, lembrar e alertar que, acima de tudo, missão integral não é uma estratégia ou técnica de evangelização ou, o que seria ainda mais nefasto, de estufamento de igrejas.


2. Missão integral não é “ministério de ação social”.

É possível que este seja o mais comum e mais perigoso engano no que se refere à noção de missão integral: confundi-la com o ministério de ação social de uma igreja local ou uma denominação. Não estamos dizendo que as igrejas não devam ter tal ministério. Muito pelo contrário. Ministérios eclesiásticos ou para-eclesiásticos de ação social podem ser um importante instrumento para a concretização de alguns aspectos do que chamamos de missão integral. Entretanto, esses ministérios não implicam que haja missão integral enquanto construto teórico teológico. Não se pode inferir da presença destas agências que haja missão integral, ou que elas trabalhem sob a égide da missão integral. E pode, por outro lado, haver missão integral sem que haja ministérios e agências de ação social, que são, no geral, de caráter meramente assistencialista, e não percebem a necessidade de instituir instrumentos políticos que possam gerar mudanças estruturais na vida sócio-cultural e político-econômica da sociedade.


3. Missão integral não é uma “teoria missiológica”.

Então, em um nível mais profundo, alguém poderia supor, ao perceber que este construto teórico afeta diretamente as práticas eclesiais, que se trata de um construto teórico de teologia pastoral, e, mais especificamente, de missiologia. A missão integral seria, portanto, uma compreensão específica de como a igreja faz missão, ou, numa redação muito melhor, como a igreja cumpre a sua missão. Seria, portanto, uma tese missiológica, mais ou menos nas seguintes linhas: a igreja cristã tem a missão de pregar o evangelho, mas esta pregação não se faz apenas com palavras, mas com atos de amor que manifestem o amor de Deus pelas pessoas através de nós, através das ações das comunidades cristãs. É evidente que tal compreensão da noção de missão integral está bem mais próxima do adequado que as concepções equivocadas descritas acima. Percebemos, todavia, que ela também tem problemas teóricos, enquanto definição conceitual da endiadys “missão integral”. Em primeiro lugar, esta compreensão pode sugerir que a missão integral é uma teoria missiológica entre outras, que uma igreja ou um cristão pode escolher ou não como sendo a sua missiologia. Tal concepção da endiadys como mera teoria missiológica, portanto, coloca em risco a percepção de sua necessidade, no sentido filosófico do termo, para a presença do evangelho. Em outras palavras, ameaça tornar a noção de missão integral algo extrínseco ao evangelho, e não intrínseco ou essencial no evangelho. E tal minimização da noção é algo que a teologia da missão integral nunca tolerou nem pode tolerar. Em segundo lugar, torná-la meramente uma teoria de teologia pastoral põe em risco a centralidade do conceito na constituição do evangelho, e essa marginalização do conceito é também algo que a teologia da missão integral nunca tolerou nem pode tolerar.


4. Missão integral não é “diaconia”.

Antes de mais nada, vamos esclarecer que o termo “diaconia” não está sendo aqui empregado como sinônimo de ministério de ação social da igreja local, ou com a idéia de uma “junta diaconal” na igreja local, ou coisas semelhantes. O termo está aqui sendo empregado para discernir algo que parece ser essencial no ensino de Cristo, que é servir. Confundir missão integral com ministério de ação social é banal e totalmente equivocado. Confundir missão integral com diaconia é bastante desculpável, pois o que proponho aqui é uma filigrana, uma distinção muito sutil realmente, que já nos lança para o âmbito da teologia bíblica e sistemática, e nos aproxima de nosso ponto de chegada, que é a relação entre missão integral e o próprio evangelho de Cristo. Esclareça-se agora, e desde já, que o evangelho de Cristo não é apenas o perdão de nossos pecados pelo sangue derramado na cruz. É, antes, nossa reconciliação com Deus pela união mística com Cristo. É a presença de Cristo em nós, a presença do Espírito Santo que é o Espírito de Cristo, que determina nossa redenção, nossa justificação e nossa santificação. A presença de Cristo em nós implica necessariamente em discipulado, sob o senhorio de Cristo. Portanto, implica em diaconia, isto é, em serviço, assumir a forma de servo que o próprio Jesus Cristo assumiu. A diaconia é, portanto, aspecto essencial do seguimento de Cristo. Quem está em Cristo, serve a Deus e ao semelhante. Sem dúvida que a prática diaconal de cada cristão no seu seguimento de Cristo parece indicar uma percepção maior ou menor, mais ou menos consciente daquilo a teologia da missão integral sugere acerca da natureza do evangelho, mas não é uma marca inquestionável de que a noção de missão integral tenha sido assimilada ou que, em outras palavras, a missão integral tenha sido adotada. É bem possível que um cristão pense na diaconia como um aspecto da vida cristã que nada tem a ver com missão.


5. Missão integral não é outro nome para a “teologia da libertação”.

Muitos podem pensar que a teologia da missão integral é uma versão evangélica da teologia da libertação, cujos principais nomes são majoritariamente católico-romanos. Há, de fato, mitos pontos-de-encontro. Porém, há também pontos divergentes, e isso desde os fundamentos. Enquanto a teologia da libertação tem sido descrita por muitos como uma leitura marxista da Bíblia, e as evidências apontam para a propriedade desta percepção acerca do referencial teórico fundamental da teologia da libertação, o mesmo não se pode dizer da teologia da missão integral, que se propõe, talvez um tanto ingenuamente, como uma teologia que é produzida apenas a partir da Bíblia, sem utilizar nenhum outro referencial teórico como chave hermenêutica. Seja como for, o importante pressuposto por detrás desta comparação é que a teologia da missão integral é uma teologia, assim como a teologia da libertação. O que significa dizer isso? Significa que a teologia da missão integral é uma interpretação geral do que é o cristianismo, do que significa ser um cristão, uma interpretação sobre o significado do próprio evangelho.


IV. Vórtice Elucidativo


Então, perguntemos agora, ainda que tentativamente, “o que é missão integral”? Para responder a essa pergunta, temos que aglutinar alguns importantes componentes da equação, e o faremos por meio de um progressivo afunilamento teórico.


1. Missão integral é uma teologia bíblica do evangelho.

Já dissemos que missão integral é uma teologia. Isso é elucidador, mas fica a pergunta: que tipo de teologia? Parece ser uma teologia bíblica, isto é, uma tentativa de configurar esquematicamente a instrução bíblica a partir da própria Bíblia em vez de partir dos loci communes da chamada teologia dogmática ou sistemática. Há, porém, muitos tipos de teologia bíblica, com diferentes ênfases. Parece-me que a teologia da missão integral é uma teologia bíblica que centra toda a reflexão teológica na definição da natureza intrínseca do próprio evangelho, e quero propor, mais construtivamente agora, que ela o vê como o cumprimento da grande comissão de Cristo à luz do Mandato Sócio-Cultural do Gênesis.


2. Missão integral é uma interpretação da Grande Comissão à luz do Mandato Sócio-Cultural.

O Mandato Sócio-Cultural surge logo nos primeiros versículos da Bíblia, compondo as primeiras ordenanças de Deus ao homem na Criação. Ler a Grande Comissão de Mateus 28 à luz do Mandato Cultural é vê-lo como resgatado diante da redenção em Cristo em face da queda. Em outras palavras, no esquema Criação-Queda-Redenção, o Mandato Cultural é recuperado na redenção em Cristo pela chamada Grande Comissão.

O Mandato sócio-cultural de Gênesis nos aponta para o projeto de Deus para a espécie humana. O projeto não está explicitamente descrito, mas implícito naquilo que a narrativa bíblica apresenta na forma de comando divino. Ele inclui: (i) apoio à família e à educação; (ii) apoio à pesquisa científica e tecnológica; (iii) promoção da nutrição alimentar e, por inferência, de todas as necessidades básicas para a sobrevivência e saúde de todos, sem exceção de ninguém; (iv) descanso e lazer para todos, e, por inferência, trabalho para todos.

Por meio da redenção em Cristo, a sua igreja se torna novamente capaz de fazer valer o mandato sócio-cultural. Isto é ler a grande comissão como retomada do projeto divino para a humanidade. Isso é, para mim, a principal base para a teologia da missão integral.


3. Missão integral é a Missão da Igreja e a Teologia que serve à Igreja.

A missão da igreja é sua razão de existir. Ela existe para cumprir sua missão, sem a qual ela não tem sentido algum. Creio que a teologia da missão integral reconhece isso e propõe que é preciso compreender a missão da igreja em sua inteireza. Mais que isso, implica também que a teologia da igreja só faz sentido se feita à luz da missão da igreja, auxiliando-a no cumprimento da mesma. Se não é assim, é teologia que se impõe sobre a igreja, e que obriga a igreja a servi-la em vez de servir a igreja. É teologia que atrapalha a igreja no cumprimento de sua missão. Toda teologia que se preze, creio eu, deve ser feita a partir de dois motores: o estudo da Bíblia e a missão da igreja.

Alguns dizem que a missão da igreja é adorar a Deus. Paulo ensina, em Romanos 12, que o verdadeiro culto a Deus é oferecer-se em sacrifício vivo, o que implica em algo mais que a adoração e o louvor na compreensão popular dos conceitos. Alguns dizem, em contrapartida, que a missão da igreja é evangelizar o mundo. De fato, mas aqui cabe perguntar o que isso significa. Seria apenas levar os homens a se decidirem por Cristo? A se tornarem membros de igrejas evangélicas? Ou seria a difusão do Reino de Deus? Ou seria ainda mais, a infusão dos valores do reino na cultura e na sociedade?


4. Missão integral é o próprio evangelho.

Missão integral é, talvez, outro nome que se pode dar ao próprio evangelho, como um cognome, ou um aposto. Como aposto, poderíamos dizer, por exemplo: “o evangelho de Cristo, isto é, a missão integral da igreja, deve ser o centro da pregação cristã”, e assim por diante.

Evangelho, como todos sabem, significa “as Boas Novas da salvação em Cristo”. Eu quero crer que é isso também que significa a missão integral. Se não fazemos essa identificação, talvez seja porque limitamos, por vício, o escopo do significado do Evangelho. Salvação em Cristo significa união mística com Cristo: Cristo em nós, operando nossa justificação e nossa santificação. Cristo em nós implica em uma transformação espiritual sendo operada; implica na imitação de Cristo; em outras palavras implica em discipulado. Na verdade, creio que é preciso afirmar que não há salvação sem a presença do Espírito de Cristo em nós, e, portanto, sem obediência, sem esvaziamento, sem tomarmos a forma de servo que Cristo tomou. Em suma, não há redenção em Cristo sem seguimento, sem discipulado, porque não há evangelho sem discipulado. Seguir a Cristo e servir a Cristo significa um engajamento naquilo que chamamos de missão integral.

Então, não há outro evangelho, a não ser este: a adoção e a participação na missão que só pode ser integral. Em hipótese alguma uma missão parcial ou fragmentária poderá ser chamada de evangelho. Não há missão parcial. E aqui está a grande falácia por detrás desta expressão, desta endiadys: missão integral, pois falar em missão integral pode fazer presumir que há outra missão cristã ou evangélica que seja também válida, e que nãos seja integral, quando na verdade só há uma missão em Cristo: aquela que inclui a integralidade daquilo que o Evangelho representa.

O problema é que isso coloca todos os adeptos da teologia da missão integral em franca e direta oposição à larga e vasta maioria das igrejas evangélicas e do mundo evangélico, que jamais compreendeu e jamais aceitou a teologia da missão integral, que certamente não entende a missão da igreja dessa forma, mas antes pregando e praticando aquilo que os adeptos da missão integral seriam obrigados a chamar de “missão parcial”.

Só a aceitaram os chamados “evangelicais”, um adjetivo que se usa, em oposição a “evangélico”, para designar um grupo de evangélicos de difícil localização. Uma palavra que é um anglicismo, tradução do inglês “evangelical” que, na verdade, quer dizer “evangélico”, e não “evangelical”. O adjetivo “evangelical” tende a cair no vazio. Quem são os evangelicais, além dos participantes da FTL?

Mas acontece que, se não há missão parcial, isso tem sérias conseqüências para quem advoga a missão integral. Assim como uma meia-verdade é, em geral, uma mentira inteira, também a noção de uma missão parcial é um equívoco. Missão parcial simplesmente não é a missão cristã, pelo contrário, é uma distorção perigosa da missão, uma distorção alienante, aviltante e opressora. Não é a verdadeira missão do corpo místico de Cristo, a Igreja Invisível, que é sempre missão integral, uma vez que essa é a única genuína missão neotestamentária. Uma missão distorcida não só não é missão de Cristo, mas presta desserviço a Cristo, pois é missão feita em nome de Cristo sem ser de Cristo. Isso a caracteriza, a partir de uma perspectiva neotestamentária, como missão do anticristo. Toda igreja que se diz cristã, mas rejeita, não por ignorância, mas conscientemente, a teologia da missão integral, está, ipso facto, sub judice, como candidata a igreja do anticristo.


V. Palavras Finais

Alguém poderá dizer, agora que desembarcamos no porto final desta caminhada teórica que compõe esta comunicação, que as conclusões a que chegamos são apenas óbvias. Diante desta observação crítica, tudo que tenho a dizer é que concordo inteiramente. Assim já dizia Caetano Veloso que seriam óbvias as palavras que o índio proferiria em um ponto eqüidistante entre atlântico e o pacífico. E que surpreenderiam por ser óbvias, pois o óbvio é bom, é claro e é verdadeiro. É precisamente da obviedade que carecemos, mas não da obviedade tautológica ou repetitiva, a platitude que não passa de um lugar comum. O que se pretendeu foi dizer o óbvio que esclarece, que desobnubila, que desobstaculiza, que ilumina e que tranqüiliza o coração. Não proponho, porém, sequer que este trabalho específico de limpar o terreno para futuras edificações esteja completo. Esclareço ainda além, portanto, que este texto pretendeu apenas iniciar uma reflexão que deve continuar em conjunto agora, num espírito fraterno e elucidativo.

Fonte: www.ftl.org.br

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Ainda Há Vida Nesses Velhos Ossos?

Uma denominação saudável nos dá força. É um lar, não uma prisão.

POR: ED. STETZER*

As denominações parecem enfrentar tempos difíceis. Controversas teológicas a respeito do cerne das crenças Cristãs enfraqueceram algumas denominações. Outras têm sucumbido ao liberalismo clássico. Uma porção delas reafirmou seu compromisso com a teologia ortodoxa, mas, mesmo assim, muitas das crescentes denominações conservadoras têm experimentado dias difíceis. Ao todo, o número de membros em 25, das 27 maiores denominações, está diminuindo (As exceções são a Assembléia de Deus e a Igreja de Deus).

O American Religious Identification Survey – ARIS 2008 (Exame Norte-Americano de Identificação Religiosa) concluiu que a porcentagem de norte-americanos que se auto-identificam como Cristãos diminuiu de 86%, número obtido em estudo em 1990, para 76% em 2008. Grande parte dessa perda parece estar localizada em grandes denominações. Ao mesmo tempo, a ARIS indicou que as igrejas sem denominação têm crescido constantemente desde 2001 – e o número dos que se auto-identificam evangélicos têm aumentado. Mas parece que as denominações não têm partilhado desse crescimento.

De acordo com muitos líderes da igreja, as denominações não estão desaparecendo – realmente estão tendo seu crescimento inibido. Tenho ouvido muitos pastores denunciarem as denominações por impedirem, mais do que ajudarem, as missões em suas igrejas. Outras críticas têm sido os gastos desnecessários, a ineficiência burocrática ou as redundâncias estruturais; estas objeções parecem ter ganhado adeptos em um clima econômico de beliscar todo centavo. A lealdade a uma denominação diminuiu e, em alguns casos, desapareceu.

Entretanto, muitas das igrejas mais conhecidas nos Estados Unidos não têm filiação denominacional. Um estudo de 2009 sobre as 100 maiores igrejas nos Estados Unidos, conduzido pela LifeWay Research, para a revista Outreach, revelou que metade das igrejas se auto-intitulam “sem denominação”. De fato, duas das três maiores igrejas dos Estados Unidos não apresentam nenhum vínculo denominacional: Lakewood Church (Houston, Texas) e Willow Creek Community Church (South Barrington, Illinois). Há uma ou duas gerações atrás isso seria chocante. Hoje é o padrão adotado.

Enquanto isso, vemos novas igrejas recebendo nomes inclassificáveis, de modo a minimizar a filiação denominacional. Algumas são “qualificadas” sem marcações denominacionais. É surpreendente descobrir que a igreja de Saddleback, pastoreada por Rick Warren, é parte da Southern Baptist Convention – SBC (Convenção Batista do Sul), e que a LifeChurch.tv (Edmond, Oklahoma) é uma Igreja Evangélica.

Há poucas décadas atrás, reuniões denominacionais eram lugares da mais ampla participação para promover e receber formação. Agora, conferências como a Catalyst e a Exponential atraem mais pessoas. (Falo para mais jovens Batistas do Sul, na Conferência Catalyst, do que na reunião anual da SBC). Inevitavelmente, sou questionado nessas conferências: “Por que você ainda está em uma denominação?” Para alguns, a idéia é tão antiquada quanto pregar em um terno.

Tenho tido o privilégio de falar nos últimos anos em dezenas de reuniões denominacionais a nível nacional. Sempre ouvi dos líderes que eles estão lutando com menor lealdade denominacional no meio de suas igrejas, um caminho que, na melhor das hipóteses, não é coerente.

Trabalho em uma denominação – a SBC – que ás vezes é disfuncional e irracional (como eu). Cresci farto da loucura denominacional e do seu drama. A idéia de trabalhar de forma independente, por vezes, é tentadora.

Por tudo isso, chamam-me de cauteloso se algumas vezes me apresento como um crente relutante com a idéia de que podemos fazer mais para o reino de Deus se fizermos juntamente com pessoas de convicções comuns – o que normalmente significa fazê-lo em uma denominação – do que fazer isso só.

Uma ferramenta para a missão – Em minha opinião, as denominações certamente não são a resposta para os males do mundo, nem nossa última e única esperança. Mas uma estrutura denominacional pode ser uma ferramenta valiosa para a igreja usar em sua missão.

Quando ouço a idéia revolucionária de um pastor para que seus membros de congregação trabalhem junto a congregações no exterior, através das missões, eu digo: “Ótimo. Esteja aberto para aprender com a Igreja Wesleyniana. Eles vêm fazendo exatamente isso, e muito bem, por um longo período”.

Quando ouço falar de uma iniciativa em rede de criação de igrejas, fico animado – mas espero que seus líderes saibam que a Presbyterian Church in America – PCA (Igreja Presbiteriana na America), através da Mission to North America (Missão para a América do Norte), tem feito isso muito bem, e não tentem descobrir de forma independente o que os outros já sabem. Muitos ministérios que ganharam destaque nacional na criação de igrejas, como o Redeemer (New York) e Perimeter (Atlanta), têm sido mais eficazes devido a sua parceria com a PCA.

Ministérios denominacionais são frequentemente menos ativos quando comparados a esforços de iniciativas independentes similares. (Não há surpresa nisso: Novidade muitas vezes chama a atenção e, muitas vezes, redes empresariais e igrejas têm de fazer um “alarde”, a fim de conquistar pessoas para seus novos esforços). Mas não se enganem: A grande maioria das missões mundiais, fundação de igrejas, discipulados e outras formas de ministérios, são realizados por meio de parceiros denominacionais.

Por exemplo, quando você vai a campo em uma missão internacional, geralmente encontra dois tipos de missionários: financiados e auto-sustentados. A quantidade de tempo despedida pelo missionário no campo, muitas vezes, pode revelar que tipo de missionário ele é. Missionários financiados por uma denominação são capazes de despender muito mais tempo sendo realmente missionários, enquanto os auto-sustentados, de igrejas independentes e redes flexíveis, muitas vezes precisam gastar muito tempo angariando fundos.

A maior força missionária denominacional na história do Cristianismo Protestante é encabeçada pelo International Mission Board (Conselho Internacional de Missões) da SBC. Seus missionários não são bem pagos, mas são encontrados em numerosos lugares. Nesses locais, são capazes de permanecer, servir e se concentrar na missão – e levantar fundos.

A resistência é inútil – Outra razão para que as denominações não desapareçam tão cedo: pessoas que pensem da mesma forma sempre encontrarão um modo de se associarem umas com as outras.

Esse impulso pode levar a uma identidade tribal insular, como aconteceu com as Igrejas de Cristo e a Igreja Cristã em 1800. Parte disso começou como um movimento de renovação que estava decidido a trazer consenso sobre o ecumenismo e a unidade – essencialmente um movimento anti-denominacional – no final das contas, se tornou uma denominação rigorosamente restrita e, em alguns casos, que negava a possibilidade de salvação para aqueles que não estivessem rigorosamente alinhados no campo teológico.

Dito isto, igrejas concentradas em missões são inevitavelmente atraídas à cooperação organizada. Dominada pelo desejo de tornar Cristo conhecido entre as nações, uma igreja geralmente percebe que é incapaz de realizar essa tarefa sozinha. O ceticismo atual sobre as denominações, juntamente com o espírito empresarial Americano e um viés para a novidade, têm levado muitos ministérios a formar novas redes de parceria.

Recentes esforços de cooperação entre congregações podem ser melhor entendidos como proto-denominações.

Aos 17 anos de idade, a Willow Creek Association conta com mais de 11 mil igrejas membros em 35 países, a partir de 95 denominações. A Association of Related Churches (Associação de Igrejas Relacionadas), liderada por Billy Hornsby e representada por igrejas bem conhecidas como Seacoast Church (Charleston), Church of the Highlands (Birmingham) e Healing Place Church (Baton Rouge), promove sermões, missões e atividades de ação social, além de uma reunião anual com denominações semelhantes. A Acts 29 Network (Rede Atos 29), fundada pelo pastor Mark Driscoll, em Seattle, tem conseguido quase 300 afiliadas em seus dez anos de existência. A Acts 29 concentra-se em mais uma missão específica de fundação de igrejas, mas agrega fortes parâmetros doutrinários e uma explicação completa do porquê de sua existência.

As redes de denominações semelhantes poderão, creio eu, tornarem-se mais como denominações do que como redes, nos próximos anos, assim como as redes do passado (por exemplo, os Metodistas) são denominações hoje.

Gosto de proto-denominações e redes missionárias. Eu mesmo pertenço a algumas. Mas, tão proeminentes quanto essas redes podem ser, igrejas locais ainda tendem a usar denominações para realizar parte do trabalho de missões globais. Não são tão chamativas, e suas páginas da Web não são tão agradáveis, mas, como mencionado acima, não devemos subestimar equivocadamente como Deus está usando as denominações.

Conectadas através do tempo – As melhores denominações podem ser entendidas, simplesmente, como redes de cooperação para as missões. Mas não são redes ligadas apenas através da geografia e da metodologia. Elas também estão conectadas através do tempo – e um grupo de trabalho existente ao longo do tempo e das gerações pode realizar mais do que um grupo existente apenas durante um período.

A variedade de movimentos recentes entre as gerações emergentes demonstra a necessidade e o desejo de enraizamento e de história. O movimento de crescimento da igreja nas décadas de 1970 e 80 (ele próprio como um tipo de proto-denominação) perpetuou a idéia equivocada de que apenas os métodos novos e originais seriam eficazes para alcançar as próximas gerações. Trocar tradições mais antigas por metodologias mais recentes, involuntariamente, acabou afastando um rico legado de fé.

Agora, uma geração mais tarde, os líderes emergentes anseiam por um senso de enraizamento. Em uma época de fragmentação das identidades sociais, estar conectado com o passado tornou-se sinônimo de encontrar propósito e significado.

Vemos esse sentimento em uma série de movimentos atuais: nos “jovens, inquietos, e Reformados”, na igreja emergente e no antigo movimento de igreja primitiva-futura de Robert Webber. Note como tudo isso é importante para os esforços da “igreja profunda” do pastor Jim Belcher da Califórnia. Ele escreve: “A maioria das pessoas está confusa com o debate entre os líderes dos evangélicos tradicionais e os líderes emergentes. Afinal, eles não querem a mesma coisa: uma igreja evangélica mais profunda e robusta, que afete intensamente as pessoas e o mundo?”. O livro de Belcher amplia a idéia para uma “terceira via”, enraizada na história e na contextualização do ministério.

Estes movimentos são por vezes sobrepostos, por vezes distintos e, por vezes, concorrentes. Mas cada um tem sido esclarecido e alimentado pelo ressurgido anseio da linhagem histórica e do patrimônio religioso. Muitos líderes da geração baby boomer desvincularam suas igrejas da tradição e trilharam seus próprios caminhos, muitos dos filhos dos boomers passaram as últimas décadas olhando melancolicamente para a praia. As denominações podem não ter feito um bom trabalho nesse processo, mas elas podem fornecer a história e o legado para esta geração desejosa de estabilidade.

A necessidade de contato com nossa linhagem espiritual e com nosso patrimônio Cristão nos ajuda a esclarecer sobre como chegamos onde estamos. O historiador e futurista Leonard Sweet propõe a metáfora de um balanço. Um balanço físico depende de movimentos interdependentes: inclinar-se para trás e pressionar-se para frente.

Da mesma forma, as denominações podem contar histórias inspiradoras de pioneirismo (inclinar-se para trás) e de progressos (pressionar-se para frente). Elas podem oferecer uma rica percepção do legado teológico e eclesiológico que uma igreja independente simplesmente não possui.

A reviravolta teológica – Igrejas não-denominacionais fazem um trabalho melhor do que as denominacionais em resposta ao corajoso e, às vezes, confuso novo mundo da espiritualidade norte-americana. Elas são flexíveis o suficiente para identificar as tendências e se adaptar.

Mas as mudanças no cenário espiritual norte-americano trazem consigo a promessa de conflitos internos e pressões externas, o que pode provocar danos irreparáveis a uma igreja sem denominação. Por exemplo, com posturas cada vez mais transformadas em relação ao casamento e a papéis do gênero, uma igreja desconectada de uma denominação não tem acesso aos líderes que já lidaram com mudanças culturais anteriores de proporções sísmicas similares.

Uma igreja denominacional em crise possui uma rede de relações, de experiências e um sistema de apoio nos quais pode se escorar. Por exemplo, caso surja um litígio entre o pastor e a sessão (conselho de administração) em uma congregação Presbiteriana, esta tem toda uma estrutura denominacional preenchida com líderes para guiá-la em um processo redentor. Não é assim com uma congregação independente.

As denominações e seus dirigentes passam juntos por muitas tempestades. Isso não quer dizer que suas igrejas-membro sempre sobrevivem, mas é mais provável que isso ocorra. Para o nosso evangelicalismo obcecado pela juventude, esta é uma dura verdade. Mas onde alguns esperam encontrar a idade, a decadência e a obsolescência nos valores, é mais provável que encontrem a longevidade, a maturidade e a sabedoria.

Denominações evangélicas, muitas vezes, são partidárias da ortodoxia, enquanto congregações independentes mais facilmente aceitam mudanças em sua teologia – às vezes muito rapidamente. A Higher Dimensions Church (Igreja Dimensões Superiores) de Carlton Pearson, uma ex-megaigreja carismática em Tulsa, teve poucos recursos para impedir sua súbita mudança teológica e a eventual fusão com a All Souls Unitarian Universalist Church (Igreja Univelsalista Unitária de Todas as Almas).

Além disso, faculdades e instituições denominacionais têm sido muitas vezes melhor sucedidas em manter a linha da ortodoxia do que instituições não-confessionais muito grandes como a Youth Men’s Christian Association – YMCA (Associação Cristã de Moços) e o Fuller Theological Seminary (Seminário Teológico Fuller). Na falta de um corpo maior que empurre contra um deslocamento à esquerda, algumas igrejas, organismos e grupos precariamente se movem em direção a heterodoxia.

Este pode ser um argumento surpreendente para as igrejas não-confessionais. Afinal, as manchetes estão repletas de líderes denominacionais e corpos movendo sua teologia para a esquerda. Mas a realidade é que estes não representam a maioria das congregações denominacionais ou a maioria dos frequentadores das igrejas norte-americanas.

É mais provável que a ortodoxia se mantenha estabelecida em denominações com valores claros de fé. Âncoras confessionais têm impedido que denominações como a Assembléia de Deus, o Sínodo da Igreja Luterana de Missouri e a Igreja Evangélica Livre, fiquem à deriva. (O debate recente sobre a mudança da declaração de fé da Evangelical Free Church – Igreja Evangélica Livre – foi um exercício útil para a conversa confessional).

É interessante notar que quase todos os teólogos evangélicos atuais são filiados a alguma denominação. Para citar alguns: John Piper é um membro da Baptist General Conference (Conferência Geral Batista); seu rival teológico em alguns pontos, NT Wright, é um bispo da Church of England (Igreja da Inglaterra). Tim Keller é um membro da PCA, e Ben Witherington é um Metodista. E assim continua.

Há cinqüenta anos, Carl Henry e Billy Graham se preocupavam justamente que os líderes denominacionais conduzissem pessoas desviadas. Hoje, pelo contrário, as denominações evangélicas parecem ser as porta-estandartes coletivas da ortodoxia.

Quando denominações desviam-se, a culpa geralmente não é da diversidade, como alguns têm defendido. Na verdade, o mais provável é que a maioria das denominações seja diversificada em muitos aspectos. A denominação deve realmente focar em tornar-se cada vez mais diversa etnicamente, em parceria com todos os tipos de igrejas biblicamente fiéis – contemporâneas, tradicionais e emergentes – e trabalhando com questões sobre seu futuro. Mas também é preciso manter um forte consenso confessional, para cumprir a missão dada por Deus. Tais confissões devem ser mais do que uma lista de crenças dadas apenas da boca para fora, mas sim devem ser crenças adotadas e valorizadas.

Vimos os laços de confissões de fé afrouxarem-se na Igreja Episcopal, o que levou os outros órgãos da Comunhão Anglicana a distanciarem-se dela e a reconsiderarem como as províncias nacionais da Comunhão se relacionam entre si. Como resultado, a Comunhão Anglicana está se movendo em direção a um nível de maior consenso global confessionário, e a igreja norte-americana provavelmente será deixada de fora.

Tais declarações confessionais ajudam um movimento a esclarecer a compreensão de sua missão, e, mais importante, a entender o Deus que o chamou para essa missão. Podemos não conhecer totalmente o que cada indivíduo de uma rede acredita, mas podemos explicar o que a denominação representa. Da mesma forma, as declarações confessionais constroem a confiança das ações denominacionais; sem elas, inevitavelmente existe uma preocupação justificável sobre se as ações partilham das normas da denominação. Mas as declarações doutrinárias não são apenas garantias. Elas têm sido instrumentos de ensino para as igrejas, ajudando na evangelização, discipulado e crescimento espiritual.

A Igreja do Evangelho Quadrangular é um bom exemplo. Possui uma confissão doutrinária que destaca os componentes considerados fundamentais para a crença e para a prática ortodoxa. Isso capacita estas igrejas a compreender as fronteiras teológicas para a comunhão na denominação. Quando fui levado ao seu gabinete nacional, por meio de uma “auditoria missionária”, no início deste ano, os líderes na sala foram capazes de recorrer a uma autoridade (Escrituras) e a uma estrutura que confessa esta autoridade (declaração de fé) com o que consideram que devem fazer juntos no futuro.

Declarações confessionais também protegem contra a distinção excessiva. Qualquer grupo que queira se definir será tentado a traçar fronteiras cada vez mais restritas. Alguns começarão a farejar, certificando se todos estão usando exatamente a mesma linguagem e a mesma abordagem, para que ninguém lute com novas idéias. Outros se preocuparão quando nem todos apoiarem um determinado programa ou ênfase denominacional. Existem ainda os que se queixarão de métodos que outros estiverem usando. Declarações confessionais tornam essa questão simples: se não possui o distintivo da confissão, não faz parte do sistema de crença da denominação, e as igrejas e os indivíduos podem ter diversas crenças e expressões nessa área.

Há momentos em que as diferenças teológicas são a maior ameaça para a cooperação na igreja. Mas, em minha opinião, o maior obstáculo em muitas denominações evangélicas hoje é a incapacidade das igrejas insulares servirem com aqueles que se diferenciam de sua metodologia.

Deveríamos discutir as implicações teológicas dos métodos? Absolutamente não. Mas devemos evitar que questões polêmicas dominem a discussão. Também não devemos pregar contra questões que são melhor direcionadas para o discernimento das igrejas individuais. Em vez disso, devemos usar a persuasão, como membros da família de Cristo, ao invés da política, como executivos em uma corporação. Se tudo for essencial, as igrejas nunca cooperarão na missão. Se nada for essencial, de qualquer modo, não há razão para cooperar.

A melhor maneira de vencer – Parafraseando a explicação da Igreja sobre a democracia: Denominações são o pior caminho para a cooperação – exceto para todos os outros. Estão reduzidas a uma liderança frágil, ineficaz e arrogante, propensa a olhar para o próprio umbigo e que, muitas vezes, se move mais devagar do que deveria. Mas estes aspectos são produtos da falibilidade humana e do pecado. Cada vez que igrejas trabalham juntas, ego, fracasso e ineficiência poderão surgir. E quando não trabalham juntas, ego, fracasso e ineficiência também surgirão. Pessoas, não denominações, são a o ponto de partida.

As denominações, em sua plenitude, não são lugares para se obter algo, mas lugares para dar e servir. Nossos dons, desejos e experiências têm maior influência em uma rede mundial denominacional. Através de uma denominação, podemos fornecer recursos para pessoas que nunca encontraremos, alcançar lugares onde nunca estaremos, e pregar o evangelho para almas perdidas que estão além do nosso alcance pessoal. Podemos encontrar o que necessitamos e dar tanto quanto queremos – porque a cooperação é fundamental para dar e receber.

A denominação saudável, enfim, nos dá força. É um lar, não uma prisão. Permite-nos compartilhar convicções teológicas específicas, práticas de manifestações relevantes para nossa comunidade e servir em uma missão comum, na única base que traz a verdadeira unidade: o evangelho.

*Diretor da Lifeway Research e missiólogo em residência da Lifeway.

Fonte: www. cristianismohoje.com.br

E DEUS AMOU A CAIM?!

POR: CAIO FÁBIO D'Araújo Filho


A Queda já era um fato. Seus efeitos cresciam no interior e no exterior.



Dentro havia solidão, medo, angustia, culpa...



Fora havia crescente dificuldade de comunicação instintual, diminuição dos sentidos e percepções, e sinais de desconexão com a natureza e sua criaturas...



O “apesar de tudo” se impôs e a vida continuou...



Chegara a hora da manifestação do maior caminho de adaptação e ajuste que o Universo jamais conhecera: o da sobrevivência do homem dentro do âmbito de sua própria consciência.



Iniciava-se o caminho da consciência...a vereda da sua formação...que aconteceria na contradição, na culpa, no perdão; por justiça, e por injustiça; no amor e no ódio...



Era a História...



Então, Adão fez amor com Eva, sua mulher; ela engravidou e teve um filho chamado Caim, acerca de quem ela disse: Alcancei do Senhor um varão!



Tornou a dar à luz a um filho, a quem se deu o nome de Abel.



Abel foi pastor de ovelhas, e Caim foi lavrador da terra.



Houve um tempo em que Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao Senhor.



Abel também trouxe dos primogênitos das suas ovelhas, e da sua gordura uma oferta a Deus.



Ora, o Senhor se agradou de Abel e de sua oferta; mas de Caim e de sua oferta não se agradou Deus.



Por esta razão irou-se Caim fortemente, e descaiu-lhe o semblante...e andava amargo.



Então o Senhor perguntou a Caim:



Por que te iraste? e por que está descaído o teu semblante? Porventura se procederes bem, não se há de levantar o teu semblante? e se não procederes bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti virá o seu desejo; mas a ti cumpre dominá-lo.



Falou Caim com o seu irmão Abel, e lhe disse:



Vamos ao campo...



E, estando eles no campo, Caim se levantou contra o seu irmão Abel, e o matou.



Perguntou, pois, o Senhor a Caim:



Onde está Abel, teu irmão?



Respondeu ele:



Não sei; sou eu o guarda do meu irmão?



E disse Deus:



Que fizeste? A voz do sangue de teu irmão está clamando a mim desde a terra. Agora maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para da tua mão receber o sangue de teu irmão. Quando lavrares a terra, não te dará mais a sua força; fugitivo e vagabundo serás na terra.



Então disse Caim ao Senhor:



É maior a minha punição do que a que eu possa suportar. Eis que hoje me lanças da face da terra; também da tua presença ficarei escondido; serei fugitivo e vagabundo na terra; e qualquer que me encontrar matar-me-á.



O Senhor, porém, lhe disse:



Portanto quem matar a Caim, sete vezes sobre ele cairá a vingança. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que não o ferisse quem quer que o encontrasse.



Então saiu Caim da presença do Senhor, e habitou na terra de Node, ao oriente do Éden.





Há muito para se dizer sobre a narrativa acima. Mas hoje quero pensar apenas no amor de Deus por Caim.



Há figuras na Bíblia que nos parecem que existiram apenas para carregar maldições.



Caim é a primeira figura humana a tornar-se uma simbolização maligna.



Sem dúvida, no resto da Bíblia, Caim cresce como figura arquetipica da desfraternalização dos humanos.



Caim é o primeiro homem que não consegue lidar com a Graça.



O amor de Deus que afirmava a genuinidade do coração de Abel, não provocou nele nenhum tipo de auto-percepção, mas apenas de projeção irada contra Deus, e objetivamente transferida de modo odioso contra o único que poderia receber seu ódio: o irmão.



Na verdade Caim é o Judas da antiguidade. Ambos são simbolizações históricas daquilo que é mal, mas não significa que o “entendimento” que houve entre Deus e eles os tenha deixado para sempre tão cristalizados em suas próprias almas, quanto cristalizados ficaram nas simbolizações que passaram a encarnar ante os sentidos históricos dos humanos.



O que temos que compreender é que os “filhos da perdição”—como Caim e Judas—existem muito mais como uma manifestação de pedagogia histórica para nós, humanos, do que como uma fixação definitiva dessas figuras em estados eternos de perdição—como se fossem mariposas do inferno, espetadas pela agulha eterna de Deus na mais nojenta parede do inferno...empalhadas em agonias infindas...como no orgasmo amargurado de certos prega-dores...amantes do fogo do inferno.



...e se esses indivíduos, à semelhança do ladrão salvo na Cruz—sobre quem a Graça se derramou, mas nós jamais creríamos se o Evangelho não tivesse nos dito que ele está com Jesus “no Paraíso”—também tiveram sua “conversa privada” com Deus...tendo-nos sobrado apenas as suas imagens como simbolizações do mal?



Como a história é sobretudo um fenômeno de comunicação, e se serve de simbolizações para se fazer ilustrar...pessoas, cidades, nações, e geografias...ficaram marcadas na Bíblia como sendo “malignas”, sendo que as coisas e pessoas...em si...não têm que ter tido o mesmo destino maligno que sua figura histórica passou a dar face.



Um dia nós entenderemos isto com muita clareza, todos nós, e nos envergonharemos de nossas pseudo-certezas, e juízos perenes.



Na realidade o Caim que entrou para a história pelo ato de perversidade cometido contra o seu irmão, Abel, não ficou de todo destituído dos cuidados divinos.



Pois a ele disse Deus:



Que fizeste? A voz do sangue de teu irmão está clamando a mim desde a terra. Agora maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para da tua mão receber o sangue de teu irmão. Quando lavrares a terra, não te dará mais a sua força; fugitivo e vagabundo serás na terra.



Ante a certeza de ser amaldiçoado, Caim entrou no mais profundo de todos os medos e terrores...ele sabia que sobre ele haveria “um clamor humano” por vingança. Então se declarou amaldiçoado e perdido...confessou-se um zumbi...um andarilho prestes a morrer...dando sempre passos para alguma emboscada...enquanto andava para o nada.



Então disse Caim ao Senhor:



É maior a minha punição do que a que eu possa suportar. Eis que hoje me lanças da face da terra; também da tua presença ficarei escondido; serei fugitivo e vagabundo na terra; e qualquer que me encontrar matar-me-á.



O Senhor, porém, lhe disse, porém alardeando Sua Palavra para todos, pois é assim que Sua voz se faz ouvir:



Portanto quem matar a Caim, sete vezes sobre ele cairá a vingança. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que não o ferisse quem quer que o encontrasse.



Que coisa linda!



Houve misericórdia e graça até para Caim.



Quem o matasse seria sete vezes vingado...e Deus pos uma marca de proteção...um selo divino...um aviso para que ninguém se metesse entre Ele e Caim.



Ora, se houve Graça que protegesse a Caim, não haverá muito maior Graça sobre a sua vida, que está sob o Sangue da Aliança, e que descansa na justiça do Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo?



Caim carregou as conseqüências históricas de seus atos, e emprestou seu nome a uma trágica simbolização. Mas não esqueçamos: isto é o que ficou para nós...para o nosso ensino...e para nos fazer ver as conseqüências de todos os atos humanos...



Todavia, ninguém sabe o que houve entre Caim e Aquele que disse que nele ninguém deveria tocar.



Os desfechos de todas as histórias humanas é um segredo divino. E sábio é todo aquele que não ousar dizer o que aconteceu.