sexta-feira, 28 de setembro de 2012

João Calvino: Vida, Obra, Teologia e Influência.



Por:   IDAURO CAMPOS

Introdução:


Neste trabalho apresentaremos um pouco sobre a vida de João Calvino. Sem dúvida um dos principais nomes do cristianismo ortodoxo. Milhões de cristãos ao redor do mundo compartilham suas idéias; as principais denominações protestantes históricas receberam seu legado; dezenas de países assimilaram o calvinismo na construção dos valores da sociedade; a religião, a economia, a educação, a política, as artes, a filantropia, a liturgia eclesiástica, a noção de estado, os deveres cívicos, os deveres individuais, a ética do trabalho, a ética da família, a ética social; a proteção do magistrado, todas estas expressões receberam colaborações substancias de Calvino ou do sistema que associou suas idéia e que ficou conhecido como calvinismo. Portanto, o calvinismo é uma força dentro do cristianismo histórico e digno de ser estudado com a devida atenção pelos amantes da história da igreja e da reflexão teológica.





Nascimento, Infância e Formação:


João Calvino nasceu em Noyon, na Picardia, França, em 10 de Julho de 1509. Era o segundo filho de uma família de cinco irmãos, sendo seu pai, Gérard Cauvin, um homem de origem simples e sua mãe, Jeanne Lefranc, mulher piedosa, bonita e de família próspera que morreu quando Calvino estava em sua primeira década de vida. Ainda jovem Calvino foi enviado a Paris para estudar Teologia, pois seu pai lhe conseguiu uma bolsa de estudos na Catedral, um benefício pelos seus serviços como secretário do Bispo e Procurador da mesma.
A infância de João Calvino fora marcada pela forte piedade de sua mãe, que o levava para peregrinações religiosas, e, também, pela própria atividade profissional de seu pai que em decorrência de seu trabalho na Catedral terminaram por aproximar o pequeno Calvino do ambiente da religião cristã. Tal ambiente provocou os primeiros despertamentos religiosos em Calvino. Teodoro Beza, contemporâneo e sucessor de Calvino declarou que o reformador francês fora notavelmente religioso em sua juventude[1].
Em Paris, Calvino estudou no Collège de La Marche e Collège de Montaigu, onde esteve em contato com o humanismo, a filosofia e as obras de Thomas à Kempis, Santo Agostinho e Bernardo de Claraval que muito contribuíram para a formação de seu pensamento. Posteriormente, também sob influência de seu pai, Calvino interrompeu os estudos da Filosofia e dedicou-se ao Direito e, em seguida, já sem seu pai vivo, dedicou-se também aos estudos do grego e do hebraico. Em 1532, com apenas 23 anos de idade, Calvino publica um Comentário sobre a obra De Clementia, do advogado, orador e filósofo espanhol, Sêneca (4 a.C-65d.C) que apesar de seu estilo notável e erudito foi um fracasso de venda[2].
Podemos dizer que a formação de Calvino, tanto seus estudos no latim, como de Filosofia e Direito pavimentaram seu raciocínio lógico que muito o ajudaram em seu amplo trabalho de reformador religioso e magistrado civil que futuramente exerceria em Genebra.









A Conversão:

As evidências apontam para os anos de 1532 a 1534[3] em Orleans ou em Paris, mas é difícil precisar, pois, diferentemente de seu colega de Reforma, Martinho Lutero, que muito falara de si[4], João Calvino é lacônico quanto a sua vida. É famosa a sua “súbita conversão” à fé cristã protestante, mas não se sabe os detalhes. Vejamos como ele próprio a define:

 “Inicialmente, visto eu me achar tão obstinadamente devotado às superstições do papado, para que pudesse desvencilhar-me com facilidade de tão profundo abismo de lama, Deus, por um ato súbito de conversão, subjugou e trouxe minha mente a uma disposição suscetível, a qual era mais empedernida em tais matérias do que se poderia esperar de mim naquele primeiro período de minha vida[5].

A primeira exposição da conversão de João Calvino se dá quando prefacia O Novo Testamento em francês em 1535[6], mas sua declaração de “súbita conversão”, conforme lemos acima, se dá apenas em 1557[7] por ocasião da publicação de seu comentário de Salmos.
Em 1534, Calvino, em Noyon, renuncia aos seus benefícios eclesiásticos que, conquistados por seu pai, lhes garantia sustento para seus estudos. É justamente este evento que historiadores entendem como a ocasião de sua conversão[8].
















Inserção No Movimento de Reforma:

Dois eventos marcam a inserção de Calvino na militância da Reforma Protestante. Primeiramente, ao perceber que algumas das questões teológicas que circulavam em seus dias eram publicadas geralmente em caráter emergencial para responder as polêmicas, deixando de fora tópicos fundamentais da doutrina cristã como a encarnação, a trindade e etc. Calvino, então, decide escrever um manual que abordasse as doutrinas mais importantes do cristianismo. Este manual foi chamado de Institutas da Religião Cristã, sendo publicado pela primeira vez, em tamanho reduzido, em 1535. A obra deu reputação a João Calvino junto aos outros Reformadores e marcou sua entrada no mundo da reflexão teológica protestante.
Outro evento fundamental para o ingresso de Calvino na Reforma Protestante foi uma circunstância curiosa. Por de volta de 1536 ele decidiu ir se estabelecer em Estrasburgo (França) ou Basiléia (Suíça) para aprofundar seus estudos no campo da teologia e escrever suas conclusões, mas, uma guerra o forçou a mudar de rota sendo necessário desviar-se por Genebra. Uma vez ali, sua intenção era de passar apenas uma noite e após seu descanso retomar sua viagem. Mas, um amigo francês, Guilherme Farel, um dos principais responsáveis pelo movimento de Reforma em Genebra, ciente da presença do autor das Institutas em terras genebrinas, decide visitá-lo para convencê-lo a ajudar na Reforma Religiosa. A narrativa do encontro é famosa, conforme nos informa Gonzalez, vejamos:

“Farel, que ‘ardia com maravilhoso zelo pelo avanço do evangelho’, apresentou a Calvino várias razões pelas quais precisava de sua ajuda em Genebra. Calvino escutou atentamente seu interlocutor, uns quinze anos mais velhos que ele, porém se negou a aceitar o rogo. dizendo-lhe que tinha projetado certos estudos e que não seria possível terminá-los na situação em que Farel descrevia. Quando por fim Farel tinha esgotado todos os seus argumentos, sem conseguir convencer o jovem teólogo apelou para o Senhor de ambos e insurgiu contar o teólogo com voz estridente: ‘ Deus amaldiçoe teu descanso e a tranquilidade  que buscas para estudar, se diante de uma necessidade tão grande te retiras e te negas a prestar socorro e ajuda’”[9].

As palavras de João Calvino sobre o encontro e a maldição proferida por Farel deixam claro que tais foram a causa de sua desistência em prosseguir com a viagem:
“Essas palavras me chocaram e causaram em mim tal impacto que desisti da viagem que intencionava fazer. Porém, consciente de minha vergonha e timidez, eu não queria ser forçado a desempenhar quaisquer funções específicas[10]”.
A combinação da publicação das Institutas e sua permanência em Genebra, cidade que através de consulta popular optara pela Reforma Protestante como expressão de sua religiosidade[11] , pavimentaram o caminho de Calvino para o eixo do movimento. No inicio seu objetivo foi simplesmente permanecer na cidade e ajudar a Guilherme Farel no que fosse necessário, mas seu brilhantismo teológico, seus sólidos conhecimentos de Direito e sua piedade logo o transformaram na figura mais importante e central do movimento reformador não só em Genebra, mas também em toda a Europa.






A Teologia de João Calvino:

Para compreender o pensamento teológico de Calvino não podemos apenas ter acesso às Institutas, mas também aos seus Comentários, aos Sermões, às Cartas, e aos Escritos litúrgicos e catequéticos que juntos revelam o todo teológico do Reformador de Genebra[12]. Entretanto, há quem discorde da originalidade teológica de João Calvino, alegando que suas proposições foram anteriormente apresentadas nos escritos de Martinho Lutero e Ulrich Zuínglio e até mesmo de Martin Bucer, Reformador de Estrasburgo[13], personagens da primeira geração de Reformadores, sendo o êxito de Calvino não o da exposição original das doutrinas, mas sim a de sua sistematização, tornando-as didáticas, claras e acessíveis à compreensão. Neste item, alegam alguns pesquisadores, Calvino foi insuperável. Falando, por exemplo, das afirmações de Calvino quanto a polêmica doutrina da eleição, vejamos as palavras de Tymothy George:
“Num exame mais aprofundado, fica-se impressionado com a falta de originalidade da doutrina da eleição apresentada por Calvino. Seu ensino acerca desse tópico é basicamente idêntico ao que já observamos em Lutero e Zuínglio...”[14]

Roger Olson, concordando com George, afirma que “o que Calvino realmente fez foi transmitir a teologia reformada de Zuínglio ao resto do mundo.” [15]
A teologia de João Calvino pode ser analisada nos seguintes conceitos:

A)  O Conhecimento de Deus – o conhecimento duplo de Deus; Escrituras Sagradas; Trindade; Criação; Providência.
B)  O Conhecimento de Deus, O Redentor – a queda, a pecaminosidade humana; a Lei; o Antigo Testamento e o Novo Testamento; Cristo, o Mediador: sua Pessoa
      (Profeta, Sacerdote e Rei) e a obra (expiação).
C)  O Modo pelo qual Recebemos a Graça de Cristo, Seus Benefícios e Efeitos – fé e regeneração; arrependimento; vida cristã; justificação; predestinação; a ressurreição final.
D)  Os Meios Externos pelos quais Deus Convida-nos à Sociedade de Cristo – igreja; sacramentos; governo civil.
Não é possível comentar neste trabalho todos os conceitos acima pelos quais podemos entender o pensamento teológico de Calvino. Destarte, pelo menos, entendamos como o Reformador discernira e registrara sua epistemologia.

A)  Epistemologia

Para Calvino a “nossa sabedoria [...] compõe-se de duas partes: o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmo”[16], sendo estas realidades inseparáveis. O conhecimento de Deus é justamente o fundamento da compreensão do próprio homem, pois este só pode discernir a si mesmo, livre de toda hipocrisia e “convencidos de toda injustiça, imundície, estupidez e impureza[17] quando contempla a face de Deus. Uma vez visitado pelo conhecimento de Deus o homem também saberá o significado deste conhecimento, sua utilidade, necessidade e finalidade. Calvino admite em sua epistemologia que o conhecimento de Deus é inerente ao ser humano, porquanto em todos existe uma “semente de religião”[18], entretanto, a potência deste conhecer é prejudicada pela ignorância e maldade também inerentes no ser humano. Calvino também ensina que há um testemunho de Deus na criação e na regência do mundo, mas que a Escritura Sagrada é a mais eficaz na comunicação da realidade de Deus, pois “é na Escritura que o Deus criador tornar-se patente para nós”[19] e, além do que, é na Escritura Sagrada que a redenção de Deus em Jesus Cristo é revelada, mas, mesmo a Escritura, para obtermos dela o seu testemunho, sozinha não é capaz de nos fazer crer e nos apropriarmos da verdade de Deus pela fé. Para isso precisamos do testemunho do Espírito Santo, pois é Ele quem autenticará em nós a verdade sobre o conhecimento de Deus. Portanto, a doutrina do conhecimento de Calvino é fundamental para que entendamos todo o corpo de sua teologia, como nos lembra W. Gary Cramptom:
Calvino começou suas Institutas com epistemologia (a teoria do conhecimento); ele não começa com como sabemos que existe um deus, e então procede para tentar provar que esse deus é o Deus da Escritura. Seu ponto de partida era a revelação. A doutrina de Deus segue a epistemologia...[20].”






B)  Predestinação
Outro aspecto importante da teologia de Calvino é quanto sua compreensão da eleição. É importante ressaltarmos que a doutrina da predestinação tão associada ao Reformador de Genebra ocupou pouco espaço em sua ”magnum opus”. Na verdade, Calvino somente tratou do assunto na sua segunda edição das Institutas da Religião Cristã, em 1539. Mas, sua sistematização foi tão poderosa que desde então seu nome ficou associado à doutrina. Precisamos entender que Calvino situa a predestinação no contexto da salvação e que, portanto, a doutrina era o clímax da obra do Deus redentor[21], tanto que na edição definitiva das Institutas em 1559, Calvino contextualiza a predestinação sob o ministério do Espírito Santo, enquanto que nas edições anteriores de sua citada obra e nos escritos de outros Reformadores, como Teodoro Beza e Willian Perkins, a predestinação ocupa o lugar da aplicação especial da doutrina da providência, tradicionalmente um aspecto da reflexão sobre Deus Pai. Destarte, é óbvio que apesar da importância de seu ensino sobre a predestinação absoluta, particular e dupla, Calvino via na predestinação apenas uma mensagem que julgava claramente ensinada nas Escrituras.




A Influência de João Calvino:

Paul Tillich chama a atenção para a realidade das cidades alemãs no século 20 que eram prósperas e das que não possuíam uma riqueza consistente. O que Tillich constatou foi que justamente as cidades influenciadas pelo calvinismo adquiriram uma prosperidade econômica, enquanto que as de tradição católica ou luterana não.[22]
Antes mesmo de Tillich, Max Weber, sociólogo alemão, percebeu que a “ética calvinista” com sua ênfase no trabalho, na austeridade, no controle das despesas e na não ostentação possibilitava o acúmulo de capital.
Diferentemente do que o catolicismo apregoava, Calvino entendeu que a livre empresa em uma sadia atuação poderia contribuir para uma regular vida comunitária e que o dinheiro seria importante para o bem-estar dos indivíduos de uma sociedade, pois o bem-estar social e a saúde econômica estão fortemente ligados e que o governo público não pode prescindir das transações comerciais. No contexto da atividade comercial e do ganho, a atenção que Calvino requer é em relação ao pobre, pois o rico, detentor dos ganhos, não pode desconsiderá-lo, porquanto deve compartilhar suas renda a fim de que o abismo entre pobres e ricos não aumente. A diferença entre os níveis sociais não era um problema para Calvino. Pelo contrário, o Reformador via como necessária as distintas posições para a que realidade comercial fosse possível. O que era imoral para Calvino era a indiferença dos abastados para com os necessitados de uma mesma comunidade. Calvino, de tão preocupado com a situação social dos cidadãos genebrinos, orientou que houvesse diáconos que visitassem as famílias pobres para auxiliar em suas necessidades e que pelo menos um entre esses diáconos dedicasse tempo integral ao ministério, sendo capacitado e adequadamente pago para isso[23].
João Calvino também dirigiu sua atenção para outros aspectos da administração da cidade, como o hospital comunitário, o abrigo dos viajantes, a necessidade de contratação de médicos e cirurgiões que pudessem atender às demandas da comunidade, sendo devidamente remunerados para o exercício de suas atividades. Atentou para o cuidado público em relação aos órfãos, as viúvas e aos que estavam na cidade sem meios de sobrevivência. Esforçou-se em promover a educação de jovens e a catequização de crianças. Até que em 1559, após muitos labores no levantamento de recursos, Calvino consegue fundar a Universidade de Genebra, com um total de 600 alunos em seu ano de abertura, tendo Teodoro Beza à frente e uma constelação de estrelas da docência européia[24].
Outra influência marcante de Calvino é quanto ao valor e o lugar do trabalho. Calvino considerava o trabalho como um apelo, uma vocação divina sendo, como nas palavras de André Boiler, estudioso do pensamento econômico e social de Calvino, “a obra pela qual o homem corresponde à vocação que Deus lhe dirige”[25]. Sendo, portanto, o trabalho uma vocação divina e a forma como o homem glorificará a Deus, pois, através de seu trabalho, o “mandato cultural” se cumprirá e a sociedade será servida, desenvolvida e protegida, significa, então, que a recusa ao trabalho implica em pecado grave, porquanto representa a negativa do homem em relação à expectativa de Deus e uma forma de ruptura com Ele[26]. Destarte, os preguiçosos e os que obtinham seus ganhos através do trabalho de outros sem que houvesse nenhum esforço na produção dos próprios rendimentos eram denunciados com veemência na Genebra de Calvino. Além disso, cabe ao magistrado garantir as plenas condições para que o trabalho se estabeleça e lutar contra toda a forma de desemprego, visto que gera calamidade social. Não significando que o Estado deva assumir a produção econômica, mas sim garantir o sitz in leben para que a livre iniciativa aconteça.
Em face de seus discursos e escritos dirigidos à sociedade civil, com seu olhar sobre a economia, a saúde, a educação, ao Estado, a filantropia, a política e a conjuntura social é nítida a modernidade do pensamento de Calvino e como suas idéias penetraram nas estruturas das sociedades que adotaram a Reforma Protestante como expressão de sua religiosidade.
Pensando nos aspectos religiosos a influência de Calvino é incontestável, pois algumas das principais e históricas denominações protestantes da Europa[27], através de suas Confissões de Fé, assumiram formas de calvinismo em seus conteúdos[28].
A moral em Genebra também foi influenciada por Calvino visto que ele instituiu o Consistório, uma Câmara que regulava a disciplina tanto na igreja como na cidade, onde, então, o adultério, a preguiça, a mendicância, as brigas, a bebida e outros hábitos considerados vis eram proibidos e punidos. O rigor do Consistório colocou-o repetidas vezes em colisão com o governo civil de Genebra, gerando animosidades e críticas. É digno de nota que apesar de sua forte participação na vida da sociedade genebrina em função de alguns conflitos com burgueses da cidade que não queriam a moral protestante, mas, sim, apenas a liberdade do jugo católico, Calvino foi convidado a se retirar da cidade o que fez, em regime de exílio, indo morar por três anos em Estrasburgo, regressando posteriormente (em 1541) onde deu continuidade ao seu trabalho como Reformador até o dia de sua morte.
Em função de seu trabalho nos campos da moral, da religião, da economia, da educação, da saúde, da filantropia a sociedade genebrina ganhou fama internacional, atraindo pessoas de todos os cantos da Europa que deram a Genebra ares de cidade cosmopolitana. Como muitas destas pessoas foram estudar na Universidade de Genebra e que inevitavelmente tiveram contato com Calvino e seu pensamento, terminaram por levar aos seus países de origem, quando do término de seus estudos, as idéias da Reforma fazendo com que o pensamento de Calvino tornasse conhecido e praticado entre seus conterrâneos o que muito ajudou ao processo de transformação dos países europeus em potências da fé protestante, consolidando assim a influência internacional de Calvino como um dos mais importantes personagens da teologia cristã em todos os tempos.







A Morte de João Calvino

Neste capítulo é mister uma transcrição das palavras de Daniel Rops, de tradição católica, professor da Academia Francesa e autor de “História da Igreja”, sobre os últimos dias do Reformador de Genebra:
“Na véspera do Natal de 1559, quando pregava na Igreja de São Pedro, abarrotada de gente, Calvino teve de forçar a voz. No dia seguinte, atacou-o uma tosse violenta e começou a escarrar sangue. O médico diagnosticou-lhe uma doença contra a qual ainda não existia nenhuma arma: a tuberculose. O enfermo tinha apenas cinqüenta anos, e o seu caso não teria sido desesperado se o seu organismo, atacado desde há muito tempo por muitos inimigos, desgastados pelo trabalho e pelas preocupações, não fosse na realidade, o de um velho precoce - o velho cuja máscara trazia. Despertados pelo novo abalo, todos os males que já lhe eram familiares lançaram-se ao ataque: pulmões, rins, intestinos, encéfalo e até os braços e as pernas. Dentro em breve, não houve uma única parte desse organismo que não fosse motivo e foco de dores terríveis. Calvino suportaria essa provação durante cinco anos, com uma coragem física e uma firmeza admiráveis. Torturado pelas cólicas, pela febre e pela gota, nem por isso deixou de dar prosseguimento aos seus trabalhos, à sua correspondência, aos
seus livros e mesmo à sua pregação, que no entanto lhe exigia um esforço sobre-humano. Nos dias em que não podia manter-se em pé, pregava sentado, e, se não conseguia andar, dois homens o levavam à igreja numa cadeira. Por vezes, as dores eram tão fortes que o ouviam murmurar, como numa prece a pedir a libertação: "Até quando, Senhor, até quando?"
Perante a morte que via aproximar-se, mostrou-se o que sempre fora: lúcido, firme e reservado. Nem uma só vez deixou transparecer temor ou fraqueza. Segundo um plano traçado com a sua lógica costumeira, fez o seu testamento e recebeu, uns após outros, os corpos constituídos da cidade, desde o Pequeno Conselho até os pastores. A estes, fez um longo e minucioso discurso, em que resumiu com fórmulas incisivas toda a sua obra, nesse tom de sincera humildade e tranqüilo orgulho que fazia parte do seu modo de ser. Convidou os seus colegas a mostrar~se firmes e vigilantes para com essa "nação perversa e má" que lhes estava confiada, e concluiu afirmando-lhes que não tivera outro desígnio sobre a terra senão ser-vir a glória de Deus. Parecia ter ditado ali o seu testamento espiritual.
No entanto, a morte concedeu-lhe um novo adiamento. Farel teve tempo de vir vê-lo pela última vez. E ele próprio, o moribundo - o seu aspecto era já o de um cadáver -, sabendo que, de acordo com a legislação eclesiástica por ele estabelecida, a reunião das "censuras" trimestrais recaía no dia 19 de maio, ordenou que o levassem até lá para participar pela última vez dessa fraternal acusação de culpas. Humildemente, foi o primeiro a sub­meter-se à censura e a deixar que lhe referissem os seus defeitos: Ira, teimosia, crueldade e orgulho". Depois, com a voz ofegante, cortada sem cessar por acessos de tosse, falou durante duas horas, prevenindo os seus ouvintes contra as más inclinações. A seguir, elevando-se aos grandes princípios, comentou apaixonadamente o Evangelho.
Foi esse o seu último ato público, e o esforço exigido deixou-o esgotado. No dia seguinte, sobreveio nova expectoração sangüínea. Não abandonou mais o leito e falava com dificuldade, exceto para murmurar as suas orações. Ouviam-no dizer várias vezes: "Senhor, tu me esmagas, mas para mim é suficiente que seja pela tua mão". Ninguém o viu entregar a alma ao Criador, calmamente, em 27 de maio de 1564, por volta das oito da noite. De acordo com a vontade que manifestara no testamento, envolveram-lhe o corpo num grosseiro pano cru e depositaram-no num caixão de pinho semelhante àqueles com que se enterravam os pobres. Sem discurso e sem cantos, foi conduzido por uma imensa multidão ao cemitério de Plainpalais. Não se erigiu nenhum monumento sobre o túmulo, nem mesmo uma cruz ou a menor pedra. Assim desejara ele regressar ao pó, no anonimato e no silêncio. E ninguém pode hoje indicar com certeza o lugar onde jaz João Calvino”[29].
A descrição dos últimos dias de Calvino revelam todo o depósito que acumulou em vida, pois continuou, a despeito do seu sofrimento, concentrado em seu trabalho, resignado e expectativo quanto a providência divina. Morreu como viveu!



Calvinismo
Alister McGrath situa o início da expressão “calvinismo” por volta dos anos 1560 sob os créditos do luterano Joaquim Westphal[30], um controversista alemão, como uma tentativa de identificar as perspectivas teológicas dos Reformadores suíços, especialmente, João Calvino. Destarte, podemos definir calvinismo como “o sistema de idéias historicamente associado a João Calvino”[31].  Esta associação é um produto do desenvolvimento do pensamento e das aplicações das idéias do Reformador. Não significando que esteja completamente dependente dele, pois em um processo dinâmico de reflexão é inevitável que aqueles que aderem ao um sistema de idéias tenham suas próprias proposições e contribuições a dar ao sistema. Isto tem gerado muita tensão nos círculos teológicos reformados, porquanto há aqueles que advogam que qualquer nova luz sobre as formas de expressão do pensamento reformado representa um distanciamento de Calvino. Na verdade esta crítica não é só dirigida aos modernos grupos e círculos reformados, pois até mesmo os históricos puritanos que eram os calvinistas na Inglaterra nos séculos XVI e XVII invariavelmente são questionados e criticados quanto aquilo que setores da teologia, especialmente, a liberal e a neo-ortodoxa, entendem como uma corrupção da teologia calvinista[32].
O calvinismo se propõe a apresentar uma cosmovisão numa perspectiva cristã. Por isso procura discutir todos os campos do conhecimento, afinal “o Reino de Deus é tão largo quanto o mundo”[33], porquanto todas as esferas da criação pertencem a Deus e, logo, precisam ser trazidas sob os domínios de Cristo. Sendo, todavia, impossível em um trabalho breve com este expor toda a cosmovisão reformada, fiquemos com as proposições no campo da religião, especialmente em relação a soteriologia que é um dos principais núcleos do calvinismo e por onde é mais facilmente identificado.
A soteriologia calvinista deve mais a Teodoro Beza do que a João Calvino, pois como sucessor na Reforma de Genebra e, portanto, herdeiro espiritual de Calvino, Beza aplicou de forma lógica as implicações da doutrina de predestinação. Beza, assim como outros teólogos reformados encontravam-se diante de forte pressões ante às idéias de seus oponentes católicos e luteranos e viam nas proposições de Calvino a equação de seus problemas quanto às questões teológicas. Os debates em torno da ordem da salvação; de quem são os eleitos; da dupla predestinação; da eficácia da pregação do Evangelho para chamar os eleitos; sobre por quem Cristo morreu, ganharam tão impressionante força que mesmo em outros países como a Holanda as tensões exigiram uma intervenção de seus magistrados civis. Na própria Holanda, por exemplo, um teólogo reformado, Jacob Arminius, que em sua época de estudante teve contato com Teodoro Beza, rejeitou completamente as idéias calvinistas de salvação. Suas críticas foram tão enfáticas que conseguiram reunir simpatizantes em torno delas, polemizando o protestantismo não só na Holanda, mas também em outros países de tradição reformada. Mesmo após a morte de Beza (1605) e Armínio (1609) a tensão entre os adeptos do calvinismo de Beza e os defensores das idéias de Armínio continuaram e foram chamados pelo governo holandês para a realização de um sínodo, onde uma fórmula teológica oficial pudesse ser adotada. Este sínodo entrou para a história como o famoso Sínodo de Dort (1618-1619) em que os calvinistas ganharam o debate e os Cinco Pontos do Calvinismo (Depravação Total; Eleição Incondicional; Expiação Limitada; Graça Irresistível e Perseverança dos Santos) foram estabelecidos como expressão das igrejas reformadas holandesas e também dos demais círculos protestantes reformados em todo o mundo até os dias de hoje.
















Conclusão:

João Calvino é personagem fundamental na história do pensamento cristão. Sua contribuição tanto na esfera religiosa como na “secular” foram expressivas e atravessaram o tempo. Isto é prova de seu vigor e da força de suas idéias, pois tanto historiadores e docentes nas escolas Ensino Fundamental, como nas Universidades e nas Faculdades de Teologia e Seminários em algum momento precisam atentar para algumas dos axiomas do Reformador de Genebra e debatê-los. Seja para criticá-lo ou assumi-lo, é nos impossível ignorá-lo. Como disse Karl Barth:
“Calvino é uma catarata, uma floresta primitiva, um poder demoníaco, algo diretamente do Himalaia, absolutamente chinês, estranho mitológico; perco completamente o meio, as ventosas, mesmo para assimilar esse fenômeno, sem falar para apresentá-lo satisfatoriamente. O que recebo é apenas um pequeno e tênue jorro o que posso dar em retorno, então, é apenas uma porção ainda menor desse pequeno jorro. Eu poderia feliz e proveitosamente assentar-se e passar o resto de minha vida com Calvino”[34]
Acho que eu também!!!
Soli Deo Glória!!!











REFERÊNCIAS
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[1] WALLACE, Ronald. Calvino, Genebra e a Reforma. São Paulo. Cultura Cristã. 2003. p.10.
[2] GEORGE, Timothy. Teologia dos Reformadores. São Paulo: Vida Nova. 1994. p.171.
[3] COSTA, Hermisten. Pensadores Cristãos: Calvino de A a Z. São Paulo: Vida. 2ª ed. 2006. p.15.
[4] GONZALEZ, Justo L. A Era dos Reformadores: Uma História Ilustrada do Cristianismo. Vol 6. São Paulo: Vida Nova. 1983.p.109.
[5] CALVINO, João. O Livro dos Salmos. Vol 1. São Paulo: Edições  Paracletos. 1999.p. 38.
[6] COSTA, Hermisten. Op.Cit. p.17.
[7] Ibid. p. 16.
[8] WALLACE, Ronald. Op. Cit. p. 15.

[9]  GONZALEZ, Justo L. Op Cit. p.113.
[10] MCGRATH, Alister. A Vida de João Calvino. São Paulo: Cultura Cristã. 2004. p. 117.
[11] Ibid. p.115.
[12]  GEORGE, Tymothy.  Op.Cit. p. 185-187.
[13] Ibid. p. 231.
[14] Idem.
[15] OLSON, Roger. História da Teologia Cristã. São Paulo: Vida. 2001.p.423.
[16] CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã. Tomo I. São Paulo: Unesp. 2007.p 37.
[17] Ibid. p.38.
[18] Ibid. p.43.
[19] Ibid. p.67.
[20] CRAMPTOM, W. Gary. Calvino Sobre Conhecimento. Disponível em www: monergismo.com.br. Acesso em : 19 jun. 2009.
[21] GEORGE, Tymothy. Op.cit. 231.
[22] TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. São Paulo: Aste. 4ªed. 2007.p. 267-268.
[23] WALLACE, Ronald. Op. Cit. p. 82.
[24] Ibid. p.87-89.
[25] BIÉLER, André. A Força Oculta dos Protestantes. São Paulo: Cultura Cristã. 1999. p.126.
[26] Idem.
[27] São os casos das igrejas reformadas, presbiterianas, congregacionais, batistas e até mesmo as anglicanas.

[28] São os casos da Confissão de Fé da Bélgica (1561); Catecismo de Heidelberg (1563); Trinta e Nova Artigos de Fé (Anglicano, 1571); Os Cânones de Dort ( 1618); A Confissão de Fé de Westminster ( Presbiteriana, 1648); Declaração de Savoy ( Congregacional, 1658) e da Confissão de Fé de Londres ( Batista, 1689).
[29] ROPS, Daniel. Morte e Glória de João Calvino. Disponível em: www.monergismo.com.br. Acesso em: 19 jun. 2009.
[30] MCGRATH, Alister. Op. Cit. p.231.
[31] Ibid. p. 233.
[32] R.T. Kendall, o pastor da famosa Westminster Chapel escreveu, na década de 90, um artigo intitulado de “A Modificação Puritana da Teologia de Calvino”, onde argumenta sobre o distanciamento das convicções dos puritanos dos ensinos clássicos de João Calvino expressos na Confissão de Fé de Westminster, o que gerou muitas críticas em círculos reformados. Em face de artigos como o supracitado e dentre outros, textos foram, aqui no Brasil, publicados criticando as afirmações de Kendall entre os quais, destacamos “A Confissão de Fé é Realmente Calvinista?” e “ O Movimento Puritano e João Calvino”, de Paulo R. B. Anglada e Franklin Ferreira, respectivamente. Publicados em Fides Reformata, em Julho-Dezembro de 1998 (Volume III. Número 2) e Janeiro-Julho de 1999 (Volume IV. Número 1).
[33] LOPES, Augustus Nicodemus. Evangélicos em Crise- As Novas Tendências da Igreja. São Gonçalo: Igreja Evangélica Congregacional em Ponte Seca. 1998.  3 Fitas de Vídeo ( 270 mim.), VHS,som,color.
[34] GEORGE, Tymothy Op.  Cit. p. 163.