O Cristão e a Política
Por: Idauro Campos
Durante décadas, no Brasil, se afirmou que “política não é coisa de crente”. A afirmação denunciava um conceito de que sendo algo “mundano” não poderíamos, como crentes, nos envolver. A isto reforçavam os escândalos e a corrupção. Quando, então, um cristão ou, o que é pior, um pastor, era acusado, a idéia de que não é correto a igreja participar da vida política da sociedade ganhava impressionante força. Nos últimos vinte anos, o número de crentes que militam na política aumentou potencialmente. Há, inclusive, partidos políticos intensamente aliançados com setores do evangelicalismo nacional. Entretanto, estes, ao se lançarem na magistratura, não discernem de forma adequada o seu papel como cristãos nas estruturas do poder público. A maioria esmagadora dos evangélicos brasileiros que alcançam um mandato no Legislativo ou Executivo percebe-se apenas como representantes de sua igreja ou denominação e não como cidadãos, que dotados da mente de Cristo, poderão à luz das Escrituras Sagradas e de acordo com suas consciências regeneradas, debater os grandes temas da sociedade, objetivando transformá-la por meio de uma militância sadia que lute por justiça, igualdade, distribuição de renda. A luta pelo bem comum, pautada em princípios éticos e morais, que promova a dignidade humana, deveria ser a causa maior de um magistrado cristão, pois esta convicção moldaria suas ações e imprimiriam os valores do Reino de Deus na sociedade. Porém, infelizmente, não é isso que vemos acontecer.
Nossa proposta neste artigo é refletir o papel do cristão na política, uma vez que se compreende que esta nada mais é que uma expressão do “Mandato Cultural”, que Deus deu ao homem para que o mesmo se desenvolvesse sobre a terra.
Política: Uma Vocação de Deus
O pecado dilacerou o projeto original no que diz respeito à unidade da humanidade. Esta unidade seria desfrutada no Éden, onde os homens povoariam (Gn. 1:28); manteriam (2:15); e viveriam de seus frutos (2:16). O Éden, portanto, era o lugar onde Deus seria conhecido como Senhor dos homens. Como Senhor absoluto, d’Ele viriam às leis pelas quais os homens se regeriam. Um todo harmônico funcionaria no Éden, em que homens e mulheres, sem divisões, sem etnias, sem conflitos, desfrutariam da unidade proposta pelo Criador. Mas, o homem foi expulso do Éden por causa do pecado e já como conseqüência, surge a polaridade entre Caim e Abel. A inveja, o ódio toma conta do primeiro e a unidade proposta inicialmente, tão cedo, se dilui. Fora do Éden é impossível haver aquela unidade e, expulso da presença de Deus por causa de seu crime, Caim, como ser social que era, constrói para si uma cidade (Gn. 4:17), um lugar que lhe desse sentido de existência, identidade, segurança, manutenção e sobrevivência.
Existência, identidade, segurança, manutenção e sobrevivência. Todos os núcleos sociais, praticamente giram em torno destes pólos. Eles são fundamentais para garantir e preservar a vida, e somente existem em função do lapso ocorrido no Éden, pois sem o pecado, a necessidade de segurança, por exemplo, seria desnecessária. Foi o pecado que quebrou a unidade orgânica da humanidade, levando-a a dividir-se em diversos núcleos (nações) que lutam para existir. É neste contexto e necessidade que tais núcleos organizam-se formalmente, pois para mantê-los é necessário que haja estruturas que os governem. Estas estruturas, apesar de não fazerem parte do plano original do Criador, terminam por representar uma manifestação da graça e da misericórdia divina, pois são justamente tais estruturas formais de poder e organização que possibilitarão o convívio entre diferentes.
Entendendo, então, a estrutura formal de poder sobre os núcleos sociais como uma necessidade inerente dos mesmos, é fundamental que a enxerguemos como uma potestade estabelecida por Deus para garantir a ordem, o desenvolvimento, a proteção e, sobretudo, a vida humana. A vida é um dom de Deus, e é Ele que se empenha em protegê-la, através, dos meios, criados por Ele próprio, para que este fim (a vida) seja garantido. Desta forma, as nuances de potestades são criadas nas suas mais variadas formas: prefeituras, distritos, estados, repúblicas, senados, câmaras legislativas etc. Para ocupar tais posições, especialmente em se tratando de núcleos democráticos, homens se habilitam e se oferecem para lhes emprestar suas idéias, seus dons, talentos e projetos. Esta oferta de talentos e soluções, típica das democracias, produz os movimentos políticos, sejam de oposição ou situação, e é este movimento político que se transformará no caminho que conduzirá os habilitados ao exercício do poder público. É a militância política que abrirá as portas para que se chegue às esferas do poder.
A política, então, muito longe de ser algo meramente “dos homens” é uma vontade divina e sendo assim, uma vocação e um dom de Deus aos mesmos. É desta forma, através da prática política, que as sociedades serão governadas. É através do exercício do poder que as soluções para os problemas de educação, saúde, moradia, economia serão apresentadas. Isto por um lado. Por outro, é também como desdobramento da prática política, como exercício de poder, que os cidadãos de um Estado estarão protegidos, pois uma das prerrogativas daquele é a proteção de seu território. Da mesma forma é este Estado que dará sentido a unidade do seu núcleo. O idioma, por exemplo, é protegido pelo Estado e por ele incentivado, sendo um dos mais poderosos e eficientes pilares de unidade e identificação de um povo.
Em uma sociedade organizada há os mais variados campos de ação e conhecimento: as artes, as ciências, o trabalho e a política. Em todos os casos, para o pleno êxito em suas tarefas, o homem requer uma vocação, um dom, um talento. Uns, por exemplo, receberão de Deus a vocação para a medicina e, através de seu trabalho, contribuirão para o desenvolvimento e preservação da humanidade. Através de seu labor a saúde e, logo, a vida no planeta, torna-se possível e sustentável. Outros, por sua vez, serão vocacionados à engenharia e construirão casas e edifícios, onde homens, mulheres e crianças poderão recolher suas cabeças depois de um dia de atividades. Pontes, estradas serão estabelecidas levando progresso, eliminando barreiras e aproximando fronteiras. A engenharia é, portanto, um dom de Deus. Semelhantemente ocorre com a política. É um dom de Deus em que homens são dotados de uma inclinação para servir aos outros. Enquanto aqueles, de acordo com seus dons cuidarão de suas áreas específicas de ação, estes cuidarão do que todos precisam. Na verdade, a política é uma renúncia do direito de cuidar do que é seu somente, ainda que “este seu” traga benefícios ao outro, para cuidar do que é comum e coletivo. Enquanto o médico e o advogado dedicam-se as suas próprias esferas, é o magistrado que cuidará do que é comum ao médico, ao advogado, ao pastor e ao pedreiro. É este sacrifício próprio em prol de muitos em que a política se afirma, se completa, se realiza e faz sentido. Sem a atividade política não há a plena realização do “Mandato Cultural”.
Cristão: Um Ser Político
É lamentável que as teorias que fomentam a arrevoada dos atuais evangélicos para o campo político sejam tão pobres de sentido e pouco cristãs em sua natureza. Algumas concepções estão presentes neste reinteresse pela política. Primeiro, a concepção do complexo de minoria. Para estes, a igreja sempre foi desprezada e rejeitada e, por ser pequena, nunca ouvida. Assim, tenta-se dar uma resposta à altura, se fazer ouvir e ver. Tenta-se mostrar que a Igreja Evangélica tem vez. A questão é, ouvir o quê? Ver o quê? E vez para quê? Quais são as causas sociais levantadas aqui? Quais as bandeiras ideológicas? Levantar-se do “berço esplêndido” da irrelevância sem ter um projeto de sociedade é apenas corroborar para a idéia que de fato não temos a menor importância.
Em segundo lugar, uma outra concepção que está presente nas atuais investidas políticas dos evangélicos é a “síndrome do messianismo”. Ou seja, achar que, por ser “evangélica”, a ala política assim identificada, uma vez eleita, resolverá todos os males sociais é um erro histórico. Por se considerar representante de Deus, acredita-se que “bons fluidos espirituais” abençoarão a gestão do serviço do poder público de tal maneira que tudo de bom acontecerá ao território. Esta idéia além de falsa é perigosa, pois significa que os movimentos contrários ao poder evangélico são, então, malignos e precisam ser controlados. Eis aí, então, a mãe das posturas inquisitivas e radicais, cometidas nos períodos áureos de poder da Igreja Católica e, atualmente, nos países do Islã.
Um cristão que se sentiu chamado por Deus para servir na política, deverá entender que suas causas não são eclesiásticas ou denominacionais. Seus dons lhes foram concedidos por Deus para servir a sociedade como um todo. Tendo, portanto, a mente de Cristo, uma consciência regenerada e piedosa, o cristão se preocupará com os grandes temas, as grandes aflições de seu povo e de que maneira o mesmo pode ser atendido. Sua fome e sede não serão de fama, dinheiro e prestígio, e sim, de justiça para todos (mesmo os não-cristãos). Sua luta será para o bem dos indivíduos. A opção pelos pobres será uma clara consciência de que estes não são melhores do que os ricos, mas sim, de que a pobreza por eles experimentada os impede o direito à dignidade humana, representada que está, no aceso a saúde, educação, emprego, renda, moradia, cultura e lazer. Portanto, sua opção por este não é para mimá-los, mas sim por entender que são os que mais precisam do estado e que este tem a obrigação de emancipá-los. O cristão luta pelos pobres, porém contra a pobreza. Levantar-se da vida privada e oferecer-se como uma alternativa ao poder público sem ter o alvo da transformação da sociedade em um mundo igualitário e justo é um contra-senso que o cristão comete além de uma ofensa ao Deus que não se agrada da injustiça, da desigualdade e da opressão e que deu aos homens os meios adequados para lutar pelo bem comum. Se Deus espera isso de todos os homens, dos magistrados incrédulos inclusive, que dirá do cristão!
Política: Uma Expressão do Mandato Cultural
Os Reformadores nos séculos XVI e XVII, desenvolveram um dos postulados mais importantes do movimento: “Soli Deo Glória!” (Somente a Deus seja a Glória!), que significa que todo o nosso trabalho, família, faculdades, dons, aspirações, empenho deve ter a finalidade de glorificar a Deus. Portanto, tudo o que sou e faço deve O exaltar nas esferas mais altas da vida. É nesta perspectiva que a política deve ser feita. As ações que visam o bem comum; a luta por igualdade entre os homens; a militância pelo desenvolvimento; a ânsia por progresso econômico; a busca pela dignidade humana; o empenho pela preservação do meio ambiente; o desejo de ver o bem definitivamente reinando sobre os homens, imprimirão nesta sociedade corrompida e sem referenciais os valores do Reino de Deus. Ao trabalhar por moldar o mundo, trazendo-o cativo aos domínios de Cristo, pois, afinal, “o Reino de Deus é tão largo quanto o mundo”, o cristão estará trabalhando pela glória de Deus entre nós. Foi sob esta convicção que muitas das ações filantrópicas na Inglaterra, Alemanha e Suíça, por exemplo, surgiram. A educação pública, os hospitais públicos e muitos bancos populares tiveram suas origens neste contexto de reflexão.
A política, sob o prisma da Teologia Reformada, é boa e necessária. Não é esta que corrompe o homem, e, sim, o contrário. Afinal, disse o Senhor, que é do coração do homem que procedem os maus desígnios (Mt. 15:19). A função do homem regenerado que é chamado por Deus a assumir seu papel nas esferas do poder deve fazê-lo de forma que o mundo veja que há um Criador que, sobre todos e tudo, reina poderosamente no Universo.
Conclusão
Vivemos no Brasil uma oportunidade histórica. O avanço da Igreja Evangélica pode em muito representar uma melhoria nos indicadores sociais, à semelhança do que aconteceu nos países de tradição protestante. Porém, isto só irá acontecer a partir da ruptura da cosmovisão prevalecente no evangelicalismo contemporâneo. Por um lado, há os setores que estabelecem uma cosmovisão maniqueísta da realidade: secular e sacro, sagrado e profano e, com esta dicotomia, demonizam a política. Por outro lado, há os triunfalistas sem projeto, que não querem mais que a igreja seja “calda” e sim “cabeça”. A política para estes não é a arte de promover o bem a todos, mas sim a oportunidade de afirmação no poder. Se tantos gozam do poder, nós, dizem eles, que “somos filhos do Rei”, não só podemos, mas devemos. Entretanto, se a cosmovisão bíblica e reformada for afirmada, se as consciências forem atingidas pelo Evangelho que nos convoca ao compromisso de transformar a sociedade, para que Deus e Seu Filho, Jesus Cristo, reinem poderosa e soberanamente, a igreja no Brasil não perderá a sua oportunidade de ser sal e luz neste mundo! Que assim seja!!!
Soli Deo Glória!!!
Idauro Campos
Texto Publicado em 2008.
Nenhum comentário:
Postar um comentário