POR: Ricardo Quadros Gouvêa
I. Palavras Introdutórias
Muito já se escreveu sobre missão integral. Os livros recentemente lançados sobre o assunto, o de René Padilla e o de Ricardo Gondim, perfazem juntos uma boa síntese do que se entendeu teologicamente até hoje por missão integral e os problemas desse construto teórico, bem como de sua aplicabilidade na vida das igrejas evangélicas e dos movimentos evangélico e/ou evangelical.
Teremos em breve encontros em que debateremos estas obras com seus autores. Sendo assim, o que propomos para hoje? Proponho um exercício de reflexão teológica conjunta a partir de um texto que servirá meramente como ponto-de-partida, que não se pretende original ou inovador, mas sim esclarecedor.
Não sei, entretanto, se eu entendo bem o que quer dizer “missão integral” ou o que é a “teologia da missão integral”. Vejo discursos e práticas desalinhadas sob esse mesmo rótulo, e fico com a sensação de que há desinformação e dissonância cognitiva, o que pode e deve ser resolvido, além de uma salutar discordância e variação nuançada, o que é positivo, mas convida ao diálogo.
Este texto busca, portanto, ainda que modestamente, auxiliar na caminhada em direção a uma resposta acerca do significado do construto teórico teológico “missão integral”, tão importante na história da Fraternidade Teológica Latino-Americana.
Estou convencido que há dois estudos propedêuticos que se fazem necessários antes que exploremos o conceito de missão integral propriamente, tentando uma aproximação mais acurada de definição ou de identificação. Passo agora, portanto, a essas duas excursões breves em teologia filosófica ou teologia cultural ou ainda teologia apologética, como se dizia antigamente. Estas duas excursões lidam com as relações entre evangelho e cultura, primeiro e, depois, entre evangelho e política.
II. Evangelho, Cultura e Política: Duas Excursões Teóricas
1. Evangelho e Cultura
Esta sempre foi uma relação de grande tensão na história do cristianismo. Hoje compreendemos que não poderia deixar de ser. Evangelho e cultura se distinguem, mas não é fácil distingui-los. O Evangelho não existe a não ser enculturado, isto é, contextualizado. Há quem queira separar o Evangelho da cultura, mas isso nunca existiu, e não pode ser feito. É da natureza do Evangelho ser cultural. O Evangelho já nasce inserido numa cultura, a cultura judaica, mas não se confunde com ela. Esta é a tensão infinitamente elástica que nos causa tantos transtornos: o Evangelho não é a cultura, nem mesmo a cultura judaica, mas só existe imiscuído e misturado com a cultura, de tal forma que não é possível extraí-lo e limpá-lo da cultura sem causar dano à natureza intrínseca do Evangelho e também à cultura. Se tentarmos distinguir cultura de Evangelho, fica um pouco de cultura, perde-se um pouco de Evangelho, e não se obtém um bom resultado.
A primeira transposição cultural sofrida pelo Evangelho foi para a cultura helenista dos tempos da chamada igreja primitiva. Essa transposição foi feita com razoável sucesso, mas não sem fortes traumas. É uma transposição que começa com Paulo, e é, portanto, sancionada pelo próprio Evangelho, pelas Escrituras Sagradas. Mas o Novo Testamento também já dá testemunho dos traumas e aflições causados pela transposição. O relativo sucesso do empreendimento deve nos fazer perceber as tremendas transformações sofridas pelo Evangelho no mundo helenista, e, em particular, a leitura de tendências neoplatônicas e semi-gnósticas que acabaram por preponderar no período patrístico, e acabaram por servir de base para a construção da teologia.
Uma segunda transposição acontece no período medieval, e posteriormente no período moderno, e sempre sofreu o Evangelho transformações, assim como transformou as culturas. Com o surgimento das nações-estado modernas, e com o crescimento econômico e populacional advindo das revoluções científica e industrial, surge um grande número de culturas ocidentais distintas promovendo novas tensões com o Evangelho herdado, e o trabalho missionário leva o Evangelho para culturas não-européias, que iriam absorver o evangelho misturado à cultura dos próprios missionários.
Os missionários das igrejas protestantes históricas trouxeram ao Brasil um Evangelho marcado pelos traços culturais de onde eles haviam partido. Foi só no século XX que a relação Evangelho e cultura passou a ser mais estudada e compreendida. Começou-se a perceber a enorme complexidade do processo enculturação do Evangelho, e se começou a falr, no fim do século XX, em contextualização.
O grande cientista da religião Helmut Richard Niebuhr, irmão do célebre teólogo Reinhold Niebuhr, foi um dos pioneiros nesse estudo, com o clássico Cristo e Cultura, onde distingue cinco diferentes possibilidades compreensão do relacionamento entre Evangelho e Cultura, que ele denomina: (i) Cristo contra a cultura; (ii) Cristo da Cultura; (iii) Cristo acima da cultura; (iv) Cristo e Cultura em Paradoxo; e (v) Cristo transformador da cultura. Niebuhr nos mostra como todos os cinco “tipos” (“tipos ideais”, como ele diz) foram praticados e implicitamente ensinados através dos tempos. No entanto, sugere que os primeiros dois são enganosos, distorções, o primeiro pela rejeição da cultura, e o segundo pela sua adoção não criteriosa ou sem qualificações necessárias. Eles representariam, grosso modo, os pólos fundamentalista e liberal. Os três outros tipos estariam, segundo o autor, mais de acordo com aquilo que o Novo Testamento propõe, o terceiro representando a posição tomista, o quarto a posição existencial-dialética, e o quinto a visão mais comum na teologia contemporânea.
Ao que me parece, a teologia da missão integral se propõe partidária, acima de tudo, da quinta possibilidade, de ver Cristo como transformador da cultura, sem negar a importância e o valor da cultura, como no caso principalmente do primeiro tipo niebuhriano, mas também do terceiro, típico do mundo evangélico conservador (que é em grande grau tomista sem saber disso). Trata-se, portanto, de trazer o Evangelho à cultura para redimi-la, não para alterá-la. Isso está de acordo com o que dissemos a princípio: o Evangelho só é verdadeiramente o Evangelho quando está enculturado, inserido na cultura e contextualizado, e só assim não é distorção.
Em suma, Cristo é mais, muito mais do que normalmente pensamos. Cristo significa uma vida melhor não só para o indivíduo, mas para a nação. O Evangelho propõe um mundo melhor, e nos convida a promover esta integração do Evangelho às culturas humanas em particular, e aos nossos projetos de civilização. Qualquer outra possibilidade é uma distorção alienante que retira do Evangelho seu escopo e seu poder transformador.
2. Evangelho e Política
Há quem diga abertamente que o Evangelho nada tem a ver com política. Há quem deplore que se discuta o que se chama vulgarmente de “questões políticas” na igreja. Quando vemos o péssimo exemplo dos políticos evangélicos, até entendemos a razão desse tipo de ojeriza à política. Mas, em geral, é fruto de uma pregação evangélica distorcida que aliena as pessoas, fazendo-as pensar que as questões políticas e sociais nada têm a ver com espiritualidade.
A relação entre cristianismo e política não deve ser confundida com a relação entre igreja e estado. A separação entre igreja e estado foi uma preciosa conquista da democracia. Ela garante a liberdade de culto e garante que, na ausência de uma religião oficial do estado, nenhuma instituição religiosa será privilegiada pelas leis do país. Isso nada tem a ver, no entanto, com a relação entre cristianismo e política. O verdadeiro cristianismo, me parece, está envolvido nas questões sócio-políticas até o pescoço. Ou talvez deveríamos dizer: até a cabeça, que é Cristo.
Sabemos que a Bíblia e o Evangelho nos convidam a um sério engajamento com os problemas sociais, econômicos e políticos. O quietismo supostamente presente em Romanos 13 empalidece ante as inúmeras passagens bíblicas nos convidando à denúncia e ao combate das injustiças sociais e os desmandos políticos. Os estudos contemporâneos sobre os tempos de Jesus e sobre sua pessoa e ministério, como os de Marcus Borg, John Crossan, Richard Horsley, e N. T. Wright, entre outros, tornam patente o fundamental elemento sócio-político de sua missão.
Isso nos convida a entender o que é a ação política que tem lugar no contexto do Evangelho. Não estamos falando de política partidária, que visa a obtenção e manutenção do poder. A ação cristã na política partidária é, em geral, fisiológica e clientelista, em benefício de igrejas, inclusive, e é, em suma, má política e mau cristianismo. Estamos falando de cidadania e consciência política do cidadão que leva a envolver-se nas questões sócio-políticas que o afetam diretamente, e particularmente a formulação e promulgação de leis que o beneficiam ou não, enquanto cidadão.
Esse é o problema da ação social assistencialista, que é o que os evangélicos praticam, em geral, e que às vezes se confunde com Missão Integral e com consciência cidadã e sócio-política, quando não é. O assistencialismo não resolve os problemas sociais e políticos porque não atinge o cerne das questões, não desce às estruturas, não ameaça os poderosos. Pelo contrário, o assistencialismo se encaixa perfeitamente no modelo dos poderes opressores de uma sociedade. Por isso, as igrejas não são combatidas, porque não ameaçam esses poderes políticos e econômicos. Se o fizesse, seria perseguida.
O que seria, então, uma igreja engajada numa luta pela cidadania e pela conscientização sócio-política? Seria uma igreja que estimulasse os seus membros a protestar, por meios legítimos e não-violentos, como passeatas e abaixo-assinados, reivindicar ante as autoridades, e, por fim, exigir leis mais justas e ação governamental voltada para a melhoria das condições de vida dos menos favorecidos. Não é isso que acontece nas igrejas evangélicas.
Eu tendo a pensar que o que a FTL entende por Missão Integral implica em uma restauração da integralidade do Evangelho de Cristo, hoje obliterado nas igrejas evangélicas, por meio de uma compreensão da relação tensa e paradoxal entre Evangelho e Cultura que nos desafia com o poder de Cristo para a transformação da cultura, e por meio de uma compreensão da relação entre Evangelho e Política que nos faça perceber as dimensões políticas e sócio-econômicas da pregação de Cristo.
III. Via Negativa
Estamos prontos agora para iniciar nossa busca pelo sentido da expressão missão integral. Para fazermos esta busca juntos, proponho partirmos de uma ponderação invertida ou negativa. Em vez de nos perguntarmos “o que é missão integral”, perguntemo-nos antes “o que não é missão integral”. Faremos algumas sugestões que certamente auxiliarão na limpeza do terreno para uma edificação positiva mais adequada a seguir.
Então, comecemos. Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que:
1. Missão integral não é “estratégia de evangelização”.
Eu peço perdão por iniciar esta parte com algo aparentemente tão banal, mas também tão fundamental. Vale dizer que eu mesmo já ouvi pessoas, em reuniões da FTL, manifestarem em suas falas, sem serem corrigidas, estar sob a sombra deste terrível equívoco. Não há equívoco mais contrário ao espírito da teologia da missão integral, em minha opinião, do que pensá-la como uma estratégia para a evangelização. É evidente que os adeptos da teologia de missão integral logo dirão que o próprio conceito de evangelização ganha novas cores a partir da adoção da noção de missão integral, que deixa de ser mera conquista de almas para Cristo, etc. etc. Porém, por outro lado, quem comete esse equívoco ainda não está, em geral, sob o impacto de uma nova compreensão do evangelho e da missão da igreja que a teologia de missão integral impõe. De qualquer forma, os evangélicos em geral tendem a cair ou recair em fórmulas gnósticas que separam e distinguem o material e o espiritual, o corpo e a alma, num espírito contrário ao do ensino neotestamentário. Vale a pena, portanto, lembrar e alertar que, acima de tudo, missão integral não é uma estratégia ou técnica de evangelização ou, o que seria ainda mais nefasto, de estufamento de igrejas.
2. Missão integral não é “ministério de ação social”.
É possível que este seja o mais comum e mais perigoso engano no que se refere à noção de missão integral: confundi-la com o ministério de ação social de uma igreja local ou uma denominação. Não estamos dizendo que as igrejas não devam ter tal ministério. Muito pelo contrário. Ministérios eclesiásticos ou para-eclesiásticos de ação social podem ser um importante instrumento para a concretização de alguns aspectos do que chamamos de missão integral. Entretanto, esses ministérios não implicam que haja missão integral enquanto construto teórico teológico. Não se pode inferir da presença destas agências que haja missão integral, ou que elas trabalhem sob a égide da missão integral. E pode, por outro lado, haver missão integral sem que haja ministérios e agências de ação social, que são, no geral, de caráter meramente assistencialista, e não percebem a necessidade de instituir instrumentos políticos que possam gerar mudanças estruturais na vida sócio-cultural e político-econômica da sociedade.
3. Missão integral não é uma “teoria missiológica”.
Então, em um nível mais profundo, alguém poderia supor, ao perceber que este construto teórico afeta diretamente as práticas eclesiais, que se trata de um construto teórico de teologia pastoral, e, mais especificamente, de missiologia. A missão integral seria, portanto, uma compreensão específica de como a igreja faz missão, ou, numa redação muito melhor, como a igreja cumpre a sua missão. Seria, portanto, uma tese missiológica, mais ou menos nas seguintes linhas: a igreja cristã tem a missão de pregar o evangelho, mas esta pregação não se faz apenas com palavras, mas com atos de amor que manifestem o amor de Deus pelas pessoas através de nós, através das ações das comunidades cristãs. É evidente que tal compreensão da noção de missão integral está bem mais próxima do adequado que as concepções equivocadas descritas acima. Percebemos, todavia, que ela também tem problemas teóricos, enquanto definição conceitual da endiadys “missão integral”. Em primeiro lugar, esta compreensão pode sugerir que a missão integral é uma teoria missiológica entre outras, que uma igreja ou um cristão pode escolher ou não como sendo a sua missiologia. Tal concepção da endiadys como mera teoria missiológica, portanto, coloca em risco a percepção de sua necessidade, no sentido filosófico do termo, para a presença do evangelho. Em outras palavras, ameaça tornar a noção de missão integral algo extrínseco ao evangelho, e não intrínseco ou essencial no evangelho. E tal minimização da noção é algo que a teologia da missão integral nunca tolerou nem pode tolerar. Em segundo lugar, torná-la meramente uma teoria de teologia pastoral põe em risco a centralidade do conceito na constituição do evangelho, e essa marginalização do conceito é também algo que a teologia da missão integral nunca tolerou nem pode tolerar.
4. Missão integral não é “diaconia”.
Antes de mais nada, vamos esclarecer que o termo “diaconia” não está sendo aqui empregado como sinônimo de ministério de ação social da igreja local, ou com a idéia de uma “junta diaconal” na igreja local, ou coisas semelhantes. O termo está aqui sendo empregado para discernir algo que parece ser essencial no ensino de Cristo, que é servir. Confundir missão integral com ministério de ação social é banal e totalmente equivocado. Confundir missão integral com diaconia é bastante desculpável, pois o que proponho aqui é uma filigrana, uma distinção muito sutil realmente, que já nos lança para o âmbito da teologia bíblica e sistemática, e nos aproxima de nosso ponto de chegada, que é a relação entre missão integral e o próprio evangelho de Cristo. Esclareça-se agora, e desde já, que o evangelho de Cristo não é apenas o perdão de nossos pecados pelo sangue derramado na cruz. É, antes, nossa reconciliação com Deus pela união mística com Cristo. É a presença de Cristo em nós, a presença do Espírito Santo que é o Espírito de Cristo, que determina nossa redenção, nossa justificação e nossa santificação. A presença de Cristo em nós implica necessariamente em discipulado, sob o senhorio de Cristo. Portanto, implica em diaconia, isto é, em serviço, assumir a forma de servo que o próprio Jesus Cristo assumiu. A diaconia é, portanto, aspecto essencial do seguimento de Cristo. Quem está em Cristo, serve a Deus e ao semelhante. Sem dúvida que a prática diaconal de cada cristão no seu seguimento de Cristo parece indicar uma percepção maior ou menor, mais ou menos consciente daquilo a teologia da missão integral sugere acerca da natureza do evangelho, mas não é uma marca inquestionável de que a noção de missão integral tenha sido assimilada ou que, em outras palavras, a missão integral tenha sido adotada. É bem possível que um cristão pense na diaconia como um aspecto da vida cristã que nada tem a ver com missão.
5. Missão integral não é outro nome para a “teologia da libertação”.
Muitos podem pensar que a teologia da missão integral é uma versão evangélica da teologia da libertação, cujos principais nomes são majoritariamente católico-romanos. Há, de fato, mitos pontos-de-encontro. Porém, há também pontos divergentes, e isso desde os fundamentos. Enquanto a teologia da libertação tem sido descrita por muitos como uma leitura marxista da Bíblia, e as evidências apontam para a propriedade desta percepção acerca do referencial teórico fundamental da teologia da libertação, o mesmo não se pode dizer da teologia da missão integral, que se propõe, talvez um tanto ingenuamente, como uma teologia que é produzida apenas a partir da Bíblia, sem utilizar nenhum outro referencial teórico como chave hermenêutica. Seja como for, o importante pressuposto por detrás desta comparação é que a teologia da missão integral é uma teologia, assim como a teologia da libertação. O que significa dizer isso? Significa que a teologia da missão integral é uma interpretação geral do que é o cristianismo, do que significa ser um cristão, uma interpretação sobre o significado do próprio evangelho.
IV. Vórtice Elucidativo
Então, perguntemos agora, ainda que tentativamente, “o que é missão integral”? Para responder a essa pergunta, temos que aglutinar alguns importantes componentes da equação, e o faremos por meio de um progressivo afunilamento teórico.
1. Missão integral é uma teologia bíblica do evangelho.
Já dissemos que missão integral é uma teologia. Isso é elucidador, mas fica a pergunta: que tipo de teologia? Parece ser uma teologia bíblica, isto é, uma tentativa de configurar esquematicamente a instrução bíblica a partir da própria Bíblia em vez de partir dos loci communes da chamada teologia dogmática ou sistemática. Há, porém, muitos tipos de teologia bíblica, com diferentes ênfases. Parece-me que a teologia da missão integral é uma teologia bíblica que centra toda a reflexão teológica na definição da natureza intrínseca do próprio evangelho, e quero propor, mais construtivamente agora, que ela o vê como o cumprimento da grande comissão de Cristo à luz do Mandato Sócio-Cultural do Gênesis.
2. Missão integral é uma interpretação da Grande Comissão à luz do Mandato Sócio-Cultural.
O Mandato Sócio-Cultural surge logo nos primeiros versículos da Bíblia, compondo as primeiras ordenanças de Deus ao homem na Criação. Ler a Grande Comissão de Mateus 28 à luz do Mandato Cultural é vê-lo como resgatado diante da redenção em Cristo em face da queda. Em outras palavras, no esquema Criação-Queda-Redenção, o Mandato Cultural é recuperado na redenção em Cristo pela chamada Grande Comissão.
O Mandato sócio-cultural de Gênesis nos aponta para o projeto de Deus para a espécie humana. O projeto não está explicitamente descrito, mas implícito naquilo que a narrativa bíblica apresenta na forma de comando divino. Ele inclui: (i) apoio à família e à educação; (ii) apoio à pesquisa científica e tecnológica; (iii) promoção da nutrição alimentar e, por inferência, de todas as necessidades básicas para a sobrevivência e saúde de todos, sem exceção de ninguém; (iv) descanso e lazer para todos, e, por inferência, trabalho para todos.
Por meio da redenção em Cristo, a sua igreja se torna novamente capaz de fazer valer o mandato sócio-cultural. Isto é ler a grande comissão como retomada do projeto divino para a humanidade. Isso é, para mim, a principal base para a teologia da missão integral.
3. Missão integral é a Missão da Igreja e a Teologia que serve à Igreja.
A missão da igreja é sua razão de existir. Ela existe para cumprir sua missão, sem a qual ela não tem sentido algum. Creio que a teologia da missão integral reconhece isso e propõe que é preciso compreender a missão da igreja em sua inteireza. Mais que isso, implica também que a teologia da igreja só faz sentido se feita à luz da missão da igreja, auxiliando-a no cumprimento da mesma. Se não é assim, é teologia que se impõe sobre a igreja, e que obriga a igreja a servi-la em vez de servir a igreja. É teologia que atrapalha a igreja no cumprimento de sua missão. Toda teologia que se preze, creio eu, deve ser feita a partir de dois motores: o estudo da Bíblia e a missão da igreja.
Alguns dizem que a missão da igreja é adorar a Deus. Paulo ensina, em Romanos 12, que o verdadeiro culto a Deus é oferecer-se em sacrifício vivo, o que implica em algo mais que a adoração e o louvor na compreensão popular dos conceitos. Alguns dizem, em contrapartida, que a missão da igreja é evangelizar o mundo. De fato, mas aqui cabe perguntar o que isso significa. Seria apenas levar os homens a se decidirem por Cristo? A se tornarem membros de igrejas evangélicas? Ou seria a difusão do Reino de Deus? Ou seria ainda mais, a infusão dos valores do reino na cultura e na sociedade?
4. Missão integral é o próprio evangelho.
Missão integral é, talvez, outro nome que se pode dar ao próprio evangelho, como um cognome, ou um aposto. Como aposto, poderíamos dizer, por exemplo: “o evangelho de Cristo, isto é, a missão integral da igreja, deve ser o centro da pregação cristã”, e assim por diante.
Evangelho, como todos sabem, significa “as Boas Novas da salvação em Cristo”. Eu quero crer que é isso também que significa a missão integral. Se não fazemos essa identificação, talvez seja porque limitamos, por vício, o escopo do significado do Evangelho. Salvação em Cristo significa união mística com Cristo: Cristo em nós, operando nossa justificação e nossa santificação. Cristo em nós implica em uma transformação espiritual sendo operada; implica na imitação de Cristo; em outras palavras implica em discipulado. Na verdade, creio que é preciso afirmar que não há salvação sem a presença do Espírito de Cristo em nós, e, portanto, sem obediência, sem esvaziamento, sem tomarmos a forma de servo que Cristo tomou. Em suma, não há redenção em Cristo sem seguimento, sem discipulado, porque não há evangelho sem discipulado. Seguir a Cristo e servir a Cristo significa um engajamento naquilo que chamamos de missão integral.
Então, não há outro evangelho, a não ser este: a adoção e a participação na missão que só pode ser integral. Em hipótese alguma uma missão parcial ou fragmentária poderá ser chamada de evangelho. Não há missão parcial. E aqui está a grande falácia por detrás desta expressão, desta endiadys: missão integral, pois falar em missão integral pode fazer presumir que há outra missão cristã ou evangélica que seja também válida, e que nãos seja integral, quando na verdade só há uma missão em Cristo: aquela que inclui a integralidade daquilo que o Evangelho representa.
O problema é que isso coloca todos os adeptos da teologia da missão integral em franca e direta oposição à larga e vasta maioria das igrejas evangélicas e do mundo evangélico, que jamais compreendeu e jamais aceitou a teologia da missão integral, que certamente não entende a missão da igreja dessa forma, mas antes pregando e praticando aquilo que os adeptos da missão integral seriam obrigados a chamar de “missão parcial”.
Só a aceitaram os chamados “evangelicais”, um adjetivo que se usa, em oposição a “evangélico”, para designar um grupo de evangélicos de difícil localização. Uma palavra que é um anglicismo, tradução do inglês “evangelical” que, na verdade, quer dizer “evangélico”, e não “evangelical”. O adjetivo “evangelical” tende a cair no vazio. Quem são os evangelicais, além dos participantes da FTL?
Mas acontece que, se não há missão parcial, isso tem sérias conseqüências para quem advoga a missão integral. Assim como uma meia-verdade é, em geral, uma mentira inteira, também a noção de uma missão parcial é um equívoco. Missão parcial simplesmente não é a missão cristã, pelo contrário, é uma distorção perigosa da missão, uma distorção alienante, aviltante e opressora. Não é a verdadeira missão do corpo místico de Cristo, a Igreja Invisível, que é sempre missão integral, uma vez que essa é a única genuína missão neotestamentária. Uma missão distorcida não só não é missão de Cristo, mas presta desserviço a Cristo, pois é missão feita em nome de Cristo sem ser de Cristo. Isso a caracteriza, a partir de uma perspectiva neotestamentária, como missão do anticristo. Toda igreja que se diz cristã, mas rejeita, não por ignorância, mas conscientemente, a teologia da missão integral, está, ipso facto, sub judice, como candidata a igreja do anticristo.
V. Palavras Finais
Alguém poderá dizer, agora que desembarcamos no porto final desta caminhada teórica que compõe esta comunicação, que as conclusões a que chegamos são apenas óbvias. Diante desta observação crítica, tudo que tenho a dizer é que concordo inteiramente. Assim já dizia Caetano Veloso que seriam óbvias as palavras que o índio proferiria em um ponto eqüidistante entre atlântico e o pacífico. E que surpreenderiam por ser óbvias, pois o óbvio é bom, é claro e é verdadeiro. É precisamente da obviedade que carecemos, mas não da obviedade tautológica ou repetitiva, a platitude que não passa de um lugar comum. O que se pretendeu foi dizer o óbvio que esclarece, que desobnubila, que desobstaculiza, que ilumina e que tranqüiliza o coração. Não proponho, porém, sequer que este trabalho específico de limpar o terreno para futuras edificações esteja completo. Esclareço ainda além, portanto, que este texto pretendeu apenas iniciar uma reflexão que deve continuar em conjunto agora, num espírito fraterno e elucidativo.
Fonte: www.ftl.org.br
Muito bom, irmão. Deus te guie.
ResponderExcluirMarco Davi de Oliveira